Na região de Loreto, a maior da Amazônia peruana, o governador e um grupo evangélico promoveram a aplicação da ivermectina veterinária em cerca de 5.000 pessoas. Nesta área isolada do Peru, onde vivem quase um milhão de pessoas, das quais 300.000 indígenas, o medo da Covid-19 e a falta de assistência do Estado levaram muita gente a aceitar a injeção do antiparasitário, que foi apresentado como um paliativo para a doença. “Desde maio, o governador do departamento de Loreto e uma aliança evangélica convocaram as pessoas, usando as emissoras de rádio, para aplicar a ivermectina veterinária como se fosse uma vacina contra a doença. Em Nauta, pelo menos 5.000 pessoas a receberam”, diz Leonardo Tello, diretor da Rádio Ucamara, a principal emissora da cidade, localizada a duas horas da capital da região, Iquitos, e ponto de entrada para as comunidades indígenas do rio Marañon.
Tello conta que muitas pessoas sentiram o coração bater mais rápido após a injeção. “O efeito colateral tem sido horroroso”, relata. Segundo ele, alguns pastores evangélicos de Loreto vincularam o novo coronavírus ao demônio e ao fim do mundo, oferecendo essas injeções “como salvação”.
Na comunidade de Cuninico, onde grande parte da população tinha sintomas da covid-19, o técnico do módulo de saúde – um ambiente pré-fabricado para a atenção de pacientes pelo Ministério da Saúde – disse aos voluntários das chamadas Missões Evangélicas da Amazônia que já não precisava da “vacina” porque a maioria das pessoas estava se cuidando com a medicina tradicional, usando plantas. Mas os enviados pelo grupo evangélico decidiram administrar a ivermectina veterinária. “A explicação dos voluntários foi clara e direta de que [o antiparasitário] está aprovado por lei e que é um tratamento animal que dá resultados positivos como vacina”, disse o apu (chefe indígena) de Cuninico, Wadson Trujillo Acosta. “Disseram que o estão administrando em âmbito nacional e também em Nauta, e alertaram sobre efeitos colaterais, como a diarreia. Algumas pessoas de fato tiveram essa reação”, descreveu.
Em Cuninico, 60% dos maiores de 18 anos receberam o medicamento. “Cerca de 160 pessoas”, detalha Trujillo. Em 2014, essa comunidade do povo indígena kukuma foi gravemente afetada por vazamento de petróleo do oleoduto Norperuano. A contaminação da água dos rios e canais impediu a pesca para consumo familiar e a venda do excedente. Ao não contar com água potável, os habitantes só podiam usar água da chuva. Após anos de litígio com o Estado, há alguns meses eles têm acesso a um módulo de saúde onde atendem seis profissionais; um ano atrás, havia apenas um técnico de saúde a cargo.
“Aqui quase todos tiveram sintomas da Covid-19 e estão tratando com remédios caseiros”, diz Trujillo. “Alguns estiveram em isolamento porque continuamos com o problema de abastecimento de remédios. Recebemos 27 testes rápidos de diagnóstico para a comunidade. Sete deram positivo, e guardamos outras sete para se houver piora nos casos. O pessoal conta com o mínimo de equipamentos de segurança, mas já temos máscaras para a população”.
Semana passada, a Direção Geral de Medicamentos do Ministério da Saúde alertou sobre o uso indevido da ivermectina veterinária no contexto da emergência sanitária da pandemia, lembrando que os produtos para animais “não cumprem as mesmas exigências dos fármacos para humanos”. “Não devem ser usadas apresentações de ivermectina formuladas para animais como substitutos de ivermectina destinada ao uso em humanos para tratar a Covid-19”, advertiu.
Apesar da recomendação das autoridades sanitárias, as injeções de ivermectina promovidas pelo governador do departamento de Loreto, Giampaolo Rojas, continuam. No centro de saúde da comunidade quíchua de Intuto, os profissionais continuam administrando ivermectina, mas “não sabem se é veterinária ou de uso humano”, afirma Juan Enrique Villacorta, correspondente da Rádio Ucamara. Os voluntários evangélicos também aplicaram o fármaco veterinário nas comunidades de Santa Rita de Castilla e Saramurillo, entre outras.
O EL PAÍS consultou o Ministério da Saúde e a Direção Regional de Saúde de Loreto sobre se poderia haver sanções contra os que administraram maciçamente a substância para uso animal, mas não obteve resposta até o fechamento desta reportagem. Segundo as autoridades sanitárias de Loreto, até há alguns dias 1.492 cidadãos indígenas haviam sido contagiados pelo coronavírus, com 14 mortes. Na região, 32% das pessoas que fizeram teste deram positivo, porcentagem apenas superada pela da região amazônica vizinha de Ucayali (34%).
O médico Julio Chirinos, professor associado da Universidade da Pensilvânia, afirmou a este jornal que discorda completamente da administração da ivermectina veterinária porque “as preparações animais tendem a não ter os mesmos padrões de qualidade que as dos humanos. Por outro lado, não existe nenhuma evidência confiável de que a ivermectina seja benéfica contra a Covid-19”. Chirinos é um dos 12 médicos e pesquisadores científicos peruanos que pediram nesta quinta-feira, numa carta aberta ao Ministério da Saúde, a retirada da hidroxicloroquina e da ivermectina (humana) do tratamento da Covid-19 “por sua falta de eficácia e seu risco de toxicidade”.
Saúde versus economia
O Peru superou na última quarta-feira a cifra de infectados da Itália, com mais de 240.000 casos confirmados, e registrou 7.257 mortes pelo novo coronavírus. A Ordem dos Médicos informou que 57 de seus associados morreram após serem contagiados no trabalho. Os hospitais de saúde mental referem 217 infectados e cinco mortos. Embora a propagação do vírus continue, na quinta-feira o Governo autorizou a reabertura dos centros comerciais. O ministro da Saúde, Víctor Zamora, disse numa coletiva na terça com jornalistas estrangeiros que é necessária a arrecadação de impostos para destiná-los à atenção sanitária, motivo do reinício da atividade come. (El Paris)