Após semanas de audiências públicas, o projeto de reforma da Previdência é o assunto que está mexendo com o Brasil. O ministro da Economia, Paulo Guedes tem repetido que a nova Previdência —em que o Governo pretende economizar 1 trilhão de reais em dez anos— irá remover privilégios e reduzir as desigualdades entre as aposentadorias do setor privado e público.
Já a oposição argumenta que as mudanças atingirão principalmente os mais pobres. Mas quem de fato vai ter de encarar mudanças com a reforma que está no Congresso? A proposta de emenda à Constituição (PEC) mexe com diferentes regras da aposentadoria brasileira e muda a perspectiva de futuro para toda a sociedade.
O projeto apresentado pelo Governo de Jair Bolsonaro já recebeu ao todo 276 emendas na comissão especial da Câmara que analisa o conteúdo da matéria. Muitos dos pedidos feitos pelos parlamentares já estão sendo discutidos com o Governo, como a retirada de mudanças nas regras do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e das aposentadorias rurais, que atinge os mais vulneráveis. Ainda que a maioria dos economistas concorde que o atual modelo de Previdência é insustentável — o déficit do INSS e dos servidores públicos saltou de 77 bilhões de reais em 2008 para 269 bilhões em 2017— há divergências sobre quais as mudanças deveriam ser, de fato, aprovadas e para quais grupos elas irão pesar mais.
Ao mesmo tempo, a reforma é considerada pelo Governo de Jair Bolsonaro uma espécie de bala de prata para recuperar as contas públicas, e por tabela, um caminho para reativar a economia cambaleante que mostra sinais de asfixia, como mostrou o resultado do PIB, de -0,2%, na semana passada. Esse sentido de urgência, porém, bate de frente com a dificuldade de encontrar consensos sobre quais alterações devem ser acatadas ou alteradas pelo Congresso.
Para destrinchar algumas das mudanças mais polêmicas propostas pela reforma, o EL PAÍS escutou três economistas: Paulo Tafner, um dos maiores especialistas em Previdência no país, o pesquisador Marcelo Medeiros, vinculado à Universidade de Princeton nos Estados Unidos, e Denise Lobato Gentil, professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Mais tempo de trabalho para todos
No cerne do projeto da reforma está a regra que estipula uma idade mínima para todos os regimes de Previdência, pondo fim as aposentadorias apenas por tempo de contribuição, que hoje exige aporte de 30 anos para mulheres e 35 para homens. Caso for aprovado, os homens poderão se aposentar apenas a partir dos 65 anos e as mulheres com 62, com ao menos 20 anos de contribuição.
A imposição de uma idade mínima deve contribuir para promover mais justiça distributiva, uma vez que afeta principalmente os trabalhadores mais ricos que, com trajetória laboral mais estável e formal, tendem a se aposentar por tempo de contribuição “precocemente”, na faixa dos 50 anos. Já os trabalhadores mais pobres, apesar de entrarem mais cedo no mercado, ficam geralmente muito tempo na informalidade e, sem carteira assinada, acabam não contribuindo tanto tempo com o INSS. No final, a maioria opta pela aposentadoria por idade, que exige um mínimo de 15 anos de contribuição.
O aumento do tempo de contribuição para todos os trabalhadores proposto pela reforma de Bolsonaro deve impor, no entanto, dificuldades para esse grupo de trabalhadores mais pobres e informais conseguirem completar os 240 meses (20 anos) necessários. Segundo a economista Denise Gentil, da UFRJ, hoje 42% dos trabalhadores brasileiros conseguem comprovar, em média, somente 4,9 meses de contribuição por ano. “Se uma dessas pessoas contribuir 20 anos, ela vai se aposentar com 71 anos”, explica. Na avaliação da professora, em um país com alto nível de informalidade e, atualmente, com um número alto de desempregados e trabalhadores subutilizados, milhões de pessoas nessa situação não conseguirão se aposentar com as novas regras. “Hoje são 68,3 milhões de brasileiros que formam esse grupo de pessoas sem carteira assinada, desempregados, subutilizados e autônomos que pouco contribuem. Só 31% dos autônomos pagam o INSS. Agora com o trabalho intermitente que virou legal após a reforma trabalhista, mais pessoas de baixa renda não conseguirão chegar a se aposentar”, explica.
Mulheres pobres terão mais dificuldade para se aposentar
O pesquisador Marcelo Medeiros avalia como positivo e crucial estabelecer uma uma idade mínima para a aposentadoria, mas concorda que a nova reforma parece não ter levado em conta as características do mercado de trabalho brasileiro. Para Medeiros, as mulheres pobres serão o grupo com maior dificuldade para se aposentar caso as novas regras sejam aprovadas. “As mulheres saem do mercado de trabalho para cuidar dos seus filhos e, quando voltam, nem sempre retornam para o setor formal, especialmente as mais pobres. Qualquer medida que torne mais rigoroso o tempo mínimo de contribuição é cruel com esse grupo”. Segundo o pesquisador, ao invés de discutir idade mínima diferenciada para homens e mulheres, o debate deveria se concentrar sobre o tempo de contribuição diferenciado para não deixar que as mulheres com baixa renda fiquem desprotegidas.
Mudanças que atingem os mais pobres: BPC e a aposentadoria rural
As mudanças no Benefício de Prestação Continuada (BPC) e na aposentadoria rural, que atingem diretamente os mais pobres, são hoje os dois principais pontos de atrito da reforma entre parlamentares. Há um consenso, no entanto, entre a oposição e deputados do centrão (governistas) de que as mudanças não devem ser mantidas.
Apesar de ser sido incluído na reforma, o BPC é uma política de assistência social, destinada a reduzir a pobreza de idosos, com renda até 250 reais, e deficientes sem outra fonte de renda mínima. Ele garante um salário mínimo mensal, atualmente de 998 reais, a partir dos 65 anos. O modelo de Previdência proposto pelo Governo quer postergá-lo, no entanto, levando de 65 para 70 anos, o benefício social de um salário mínimo, e em contrapartida oferece um valor de 400 reais para os trabalhadores pobres, com renda até 250 reais, a partir dos 60 anos. A medida tem gerado controvérsia. Enquanto Rogério Marinho, secretário especial de Previdência, defende que o Governo está tentando antecipar uma assistência que hoje só é dada aos 65 anos, críticos afirmam que a proposta tenta desvincular o salário mínimo do benefício (o que retira uma garantia de reajuste) e tenta economizar às custas dos mais pobres.
Na avaliação de Paulo Tafner, a situação das pessoas que se enquadram para receber o benefício deve melhorar entre os 60 e 65 anos, mas piorar entre os 65 e 70 anos. “Na média, a situação fica igual. Os dados mostram que, em praticamente todos os casos, os candidatos ao BPC já se enquadram nas regras antes dos 60 anos. É uma trajetória que não muda”, explica. Segundo o economista, os beneficiários são pessoas de baixíssima escolaridade, na maioria sem emprego, negras ou pardas, e mulheres.
Para Tafner, a economia de 3 bilhões de reais ao ano almejada pelo Governo com a mudança é bem pequena. “Não é aí que o Brasil está fazendo economia, mas o benefício tal como está hoje não está bem desenhado. Ele não tem fase progressiva que aliviaria os mais pobres antes dos 65 anos”, explica. Especialista em Previdência, Tafner sugere um redesenho do benefício que poderia começar aos 62 anos (com valores crescentes de 400 reais, 500 reais e 600 reais), e aos 68 anos, os beneficiados já receberiam um salário mínimo, como hoje acontece aos 65 anos. “Assim o Governo não perde nem ganha, e você começa a tirar um monte de gente da pobreza já a partir dos 62 anos. Se o desenho 60-70 não está bom, há a possibilidade de uma proposta como essa”, explica. “Melhor dar benefício de 1.000 reais para cinco pessoas ou de 500 reais e atender dez pessoas?”, questiona.
Hoje, de acordo com o especialista, o benefício tem “o efeito perverso de dar o mesmo valor do benefício de quem contribui”. “Isso desestimula a contribuição”, argumenta.
Medeiros discorda e afirma que o argumento é errado, já que quem ganha o BPC recebe menos 8% do que uma aposentadoria rural, porque o benefício não possui o décimo terceiro salário. Além disso, o pesquisador não acredita que as pessoas vejam o BPC como uma boa saída para não contribuir, já que o programa tem um risco alto: o da pessoa não conseguir comprovar uma renda abaixo de um quarto do salário mínimo. “Ninguém consegue calcular o que vai ganhar no futuro. Se ela for casada com uma pessoa que tem uma aposentadoria ela já não se enquadra. Dizer que o BPC de hoje incentiva a não contribuir é errado. As pessoas não contribuem não porque não querem e sim porque não podem”, diz.
Outro tema que tem gerado bastante discussão é a mudança na aposentadoria rural. O trabalhador rural hoje pode se aposentar aos 55 anos ( mulheres) e 60 ( homens) – e precisa comprovar 15 anos de trabalho, mas não tem obrigação de contribuir. Com a reforma, a proposta fixa idade mínima de 60 anos para ambos os sexos e uma contribuição mínima de 20 anos, baseada nos ganhos com a produção, de no mínimo 600 reais ao ano (50 reais por mês) por grupo familiar. Como historicamente contribui pouco, a categoria é responsável pela maior parte do rombo do INSS.
Na avaliação de Denise Gentil, uma aposentadoria rural mais dura pode inviabilizar o benefício. “A proposta não reconhece a dinâmica do trabalho no campo e que os trabalhadores podem não conseguir esses 600 reais de contribuição ao ano. É uma reforma de um Governo que se orgulha de cortar gastos, não importa como será o corte. É contra os mais pobres e os trabalhadores”, diz.
Tafner discorda e argumenta que atualmente há muitas fraudes, já que é muito difícil burlar a comprovação de tempo de trabalho no campo. “A reforma não é para aliviar as pessoas. É exatamente porque está muito fácil ter aposentadoria que o país está em crise. Todos nós, no campo ou na cidade, estamos vivendo mais”, diz.
Contribuição maior para funcionários públicos e da iniciativa privada
Dentre as diversas mudanças, há um consenso entre os especialistas de uma medida que ajudará a melhorar a distribuição de renda: a criação de alíquotas de contribuição progressiva para o setor privado e os servidores. Hoje, os empregados da iniciativa privada recolhem de 8% a 11%, dependendo do salário. A nova regra prevê alíquotas que variam de 7,5% a 14%, distribuídas em mais faixas salariais. Para o funcionalismo, cuja cobrança padrão é de 11%, a cobrança pode chegar a 22% para quem recebe 39 mil reais ou mais. O modelo foi pensado para garantir que quem ganha mais pagará mais que os que ganham menos.
“A contribuição progressiva é correta e positiva, já surte efeito no curto prazo. Mas deve ser pedida para todas as categorias, inclusive para os militares”, aponta Medeiros. A proposta de reforma para os militares – apresentada à parte pelo Governo – unifica a contribuição de todos os beneficiários do sistema e passa a ser de 10,5% sobre o valor integral do rendimento bruto a partir de 2022. Cabos e soldados estarão isentos dessa contribuição durante o serviço militar obrigatório. Hoje ativos e inativos contribuem com 7,5% sobre o rendimento bruto.
Mas afinal, as mudanças vão pesar mais para algum grupo?
Ainda que individualmente a reforma piore a situação de todos os trabalhadores brasileiros com regras mais rígidas, Tafner defende que quando olhamos o coletivo, a mudança será positiva para a sociedade como um todo. “A partir do momento em que o Governo consiga controlar as contas públicas, o Estado terá maior capacidade de investir em recursos em educação e saúde, duas áreas que, quando sofrem cortes, atingem muito mais os mais pobres”, afirma.
Para o economista, não há dúvida de que na equação das novas regras da aposentadoria serão os segmentos mais ricos os mais punidos. “Pegue o exemplo de um funcionário público, hoje ele se aposenta com 53, 54 anos. Com a reforma, para chegar ao salário integral do benefício, ele terá que trabalhar até os 65 anos, 10 anos mais. Já a alíquota dele pode chegar a 18%, enquanto o trabalhador urbano mais pobre será de 7,5%”, diz.
Outro aspecto que pune os mais ricos, segundo o economista, é que, com a reforma, todos os servidores, inclusive deputados, senadores ou juízes, vão ganhar no máximo 5.800 reais de aposentadoria. “Proporcionalmente, o custo individual é muito maior dessas pessoas e nesse sentido a reforma é justa. Todo mundo está sendo punido, mas os mais ricos mais. Não é a toa que os servidores estão contra”, explica Tafner.
A visão de Denise Gentil é completamente oposta. Para a economista, a reforma é desalentadora e não combate privilégios. “Se quisesse combater não usaria a Previdência como estratégia e sim a reforma tributária. O que o projeto quer é desconstitucionalizar toda a proteção social. Sem segurança jurídica, as pessoas irão trabalhar sem perspectiva de se aposentar”, afirma Gentil. Na avaliação da professora da UFRJ, as mulheres, professoras, os trabalhadores rurais e os beneficiários do BPC serão os maiores prejudicados. “Pensando em cortes, a estratégia é de eliminação. Eliminar as pessoas de alcançar a sobrevivência na velhice”.
Na avaliação de Medeiros, dizer que quem pagará mais o ônus das mudanças na aposentadoria serão os pobres é equivocado. “Muita gente vai pagar. O que precisamos fazer é uma reforma que alie responsabilidade fiscal com responsabilidade social. Esse projeto foi desenhado de tal maneira em que todo mundo sai perdendo, mas o ideal é fazer mudanças para que os pobres percam menos”, diz.
Para o pesquisador, a distribuição das aposentadorias é hoje extremamente concentrada, e é ainda maior que a desigualdade do mercado de trabalho. “Isso traz uma mensagem importante. Se você economizar no topo, você economiza a maior parte dos recursos. Se você não fizer concessões para as categorias que estão no topo, você consegue economizar muito mais que apertando as pessoas da parte de baixo”, explica Medeiros.
Apesar de avaliar que a reforma traz uma série de medidas positivas, o pesquisador afirma que o Governo continua lançando medidas que protegem professores, militares, policiais, mas não está interessado em propor medidas para ajudar os mais pobre. “A reforma mira a economia fiscal, mas não se preocupa em melhorar a aposentadoria de ninguém. Ela só tira. É compreensível dado o rombo nas contas, mas para os mais pobres é necessário criar mecanismos de proteção um pouco melhores”, conclui. (El País)