O Brasil teve 65.602 pessoas assassinadas em 2017. É o que revela o Atlas da Violência, feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e publicado nesta quarta-feira (5). O número indica o registro de 1.707 mortes a mais que o divulgado pelo próprio fórum em seu anuário, que tem como base os dados das secretarias da Segurança. Os dados do Atlas são do Sistema de Informações sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde. Trata-se do maior nível histórico de letalidade violenta intencional no país, que atingiu uma taxa de 31,6 mortes violentas para cada 100 mil habitantes. “O que está acontecendo no Brasil é algo realmente estonteante e fora dos padrões mundiais. Poucos países se aproximam do Brasil em termos de taxa de homicídio”, afirmou Daniel Cerqueira, coordenador da pesquisa, em uma entrevista coletiva nesta quarta, no Rio de Janeiro. O estudo explica o motivo de os dados da segurança pública e da saúde destoarem. “Segurança pública e Saúde contam com metodologias distintas para contabilização das mortes, pois seus sistemas de informação servem a propósitos distintos. Para o sistema de segurança pública e justiça criminal importa saber se houve ou não um crime e tipificá-lo de acordo com a categoria penal correta, ao passo que para a saúde importam as informações de cunho epidemiológico relacionadas ao perfil da vítima e em que contexto morreu”, diz o Atlas.”Cada sistema estatístico refletirá, portanto, as preocupações pertinentes ao seu universo e nenhum deles é necessariamente superior a priori. Isso significa que os dados de ambas as fontes nunca serão iguais, mas precisam ser congruentes”, completa o documento.O relatório mostra que ambas as fontes apresentam a mesma tendência e números bastante similares entre 2013 e 2017. “Mas se entre 2014 e 2016 a diferença entre os dois sistemas não ultrapassa 1,4%, em 2017 a diferença atinge 2,7%”, afirmam os pesquisadores.
“Como não existe padronização nacional em relação às estatísticas criminais, e os sistemas estaduais diferem muito entre si, a desconfiança é natural e a melhoria do registro deve ser perseguida continuamente”, dizem os pesquisadores no documento. “A transparência e a qualidade dos dados são ferramentas fundamentais para a melhoria das condições da segurança pública brasileira.” Em alguns estados, houve uma diferença gritante, caso de Amazonas e Bahia. No Amazonas, os registros policiais indicaram 403 vítimas a menos; na Bahia, foram 572 mortes a menos que as registradas pela saúde.
“Possivelmente o forte crescimento da letalidade nas regiões Norte e Nordeste nos últimos anos tenha sido influenciado pela guerra de facções criminosas deflagrada entre junho e julho de 2016 entre os dois maiores grupos de narcotraficantes do país, o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV) e seus aliados regionais — principalmente as facções denominadas como Família do Norte, Guardiões do Estado, Okaida, Estados Unidos e Sindicato do Crime.”De acordo com Daniel Cerqueira, no início dos anos 2000 eram quatro facções estruturadas e conhecidas no país. Ao longo da década, essas organizações criminosas já somavam mais de 70. “Hoje, cada estado tem pelo menos uma facção para chamar de sua”, afirmou Samira Bueno, diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e uma das autoras do estudo. Os dados revelam que o Ceará, o Acre e o Rio Grande do Norte estão entre os estados com o maior crescimento da violência em 2017 — os três, no entanto, já conseguiram reduzir as taxas recentemente. O G1 mostrou as ações tomadas pelos estados. O coordenador do estudo disse que um dos objetivos do Atlas é tentar explicar o crescimento dos homicídios até 2017 e a posterior queda, em 2018. Segundo o pesquisador, isso se deve a um “efeito composição” dos dados.”Cada vez mais, mais unidades federativas estão conseguindo diminuir suas taxas de homicídio. Em outras, porém, há um aumento significativo”, afirmou Cerqueira. “Na última década, por exemplo, a região Norte registrou um aumento de 80% nos casos de homicídio.” O Atlas mostra ainda que o índice de buscas na internet por facções envolvidas em rebeliões em Manaus e no Rio Grande do Norte foi maior nos estados do Norte e Nordeste com maior taxa de homicídios.
Juventude perdida
O relatório chama a atenção para o que classifica de “juventude perdida”. É que os jovens de 15 a 29 anos formam a parcela mais atingida pela violência. Em 2017, foram assassinados 35.783 jovens, uma taxa de 69,9 mortes a cada 100 mil – recorde dos últimos 10 anos.
Um outro dado mostra o quão grave é a situação: os homicídios foram a causa de 51,8% de todas as mortes na faixa de 15 a 19 anos. Em 15 estados, a taxa de jovens mortos foi superior à média nacional.
“Nesse ponto, é fundamental que se façam investimentos na juventude, por meio de políticas focalizadas nos territórios mais vulneráveis socioeconomicamente, de modo a garantir condições de desenvolvimento infanto-juvenil, acesso à educação, cultura e esportes, além de mecanismos para facilitar o ingresso do jovem no mercado de trabalho. Inúmeros trabalhos científicos internacionais, como os do Prêmio Nobel James Heckman, mostram que é muito mais barato investir na primeira infância e juventude para evitar que a criança de hoje se torne o criminoso de amanhã, do que aportar recursos nas infrutíferas e dispendiosas ações de repressão bélica ao crime na ponta e encarceramento”, diz o estudo. Para os pesquisadores, no atual cenário, em que está em curso a mais profunda transição demográfica da história, rumo ao envelhecimento da população, a alta letalidade de jovens gera fortes implicações, inclusive sobre o desenvolvimento econômico e social.
Violência contra a mulher
O Atlas da Violência também mostra que houve um aumento nos homicídios de mulheres em 2017 – fenômeno já registrado pelo Monitor da Violência. O número, porém, também é maior que o divulgado pelas autoridades de segurança. São 4.936 mulheres vítimas, de acordo com os registros do Sistema de Informações sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde. Se for levada em conta a última década, de 2007 a 2017, houve aumento de 30,7% no número de homicídios de mulheres. A taxa passou de 3,9 para 4,7 assassinadas a cada 100 mil. Dentro desse universo, destaca-se a desigualdade racial entre as vítimas de assassinatos. “Enquanto a taxa de homicídios de mulheres não negras teve crescimento de 1,6% entre 2007 e 2017, a taxa de homicídios de mulheres negras cresceu 29,9%. Em números absolutos a diferença é ainda mais brutal, já que entre não negras o crescimento é de 1,7% e entre mulheres negras de 60,5%”, diz o estudo. As negras representam 66% do total de mulheres mortas de forma violenta em 2017.
Desde a publicação da Lei do Feminicídio, em março de 2015, os pesquisadores questionam se houve aumento de casos em que mulheres foram mortas em crimes de ódio motivados pela condição de gênero ou se o que ocorreu foi uma diminuição da subnotificação. Para tentar responder, os pesquisadores do Atlas utilizaram os dados da saúde que permitem saber o local da ocorrência do crime. Do total de homicídios contra mulheres, 28,5% ocorreram dentro de casa — 39,3%, se considerados os óbitos com local ignorado. Segundo o Atlas, de 2012 a 2017, houve aumento de 1,7% na taxa de homicídio de mulheres. Quando os dados são desmembrados, o homicídio de mulheres fora da residência diminuiu 3,3% no período, mas aumentou 17,1% dentro das casas. Já o uso de arma de fogo no assassinato de mulheres aumentou 25,4% nestes cinco anos. Levando em conta os casos dentro das residências com arma de fogo, o aumento foi de 29,8%. Como Daniel Cerqueira revelou em estudo de 2014, a cada 1% a mais de armas de fogo em circulação há aumento de 2% na taxa de homicídio. “Apenas em 2017, mais de 221 mil mulheres procuraram delegacias de polícia para registrar episódios de agressão (lesão corporal dolosa) em decorrência de violência doméstica, número que pode estar em muito subestimado dado que muitas vítimas têm medo ou vergonha de denunciar.”
Recorde de assassinatos por armas de fogo
O número de assassinatos por arma de fogo, aliás, cresceu 6,8% entre 2016 e 2017, chegando ao patamar inédito de 47,5 mil mortes – ou mais de 70% dos homicídios registrados no ano.
Dos 27 estados, 13 tiveram aumento no número de mortes por arma de fogo. A maior alta foi registrada no Acre: 70%.
De acordo com Daniel Cerqueira, se não fosse o Estatuto do Desarmamento, “a taxa seria 12% maior”.
Samira Bueno ressaltou que nos 14 anos anteriores ao estatuto a taxa de homicídios subia, em média, 5,4% ao ano. Nos 14 anos seguintes, o aumento médio passou a ser de 0,85% ao ano. “A trajetória continua ascendente, os homicídios continuam crescendo, mas numa proporção muito menor”, enfatizou. Para os pesquisadores, “existe uma maré correndo na direção da diminuição de crimes violentos no Brasil” proporcionada pela mudança demográfica, com a diminuição de homens jovens na população, e pelo Estatuto do Desarmamento. Por isso, eles reiteram o alerta para os efeitos “nefastos” que a flexibilização da posse e do porte de armas no Brasil podem representar, além da falta de políticas públicas estruturadas e efetivas de proteção às minorias sociais. “Se o Estatuto do Desarmamento funcionou como um freio dos homicídios no Brasil, que levou alguns estados a ajudar na redução de homicídios, hoje nós vemos a situação mudando com uma flexibilização total sobre arma de fogo”, disse Cerqueira. O pesquisador defendeu que o Judiciário em sua instância máxima, o Supremo Tribunal Federal (STF), barre a flexibilização das armas. “Se isso não acontecer, olhando a literatura científica internacional das últimas duas décadas, existe um potencial extremamente perigoso para o Brasil. Porque uma arma de fogo em circulação não pode causar um homicídio imediato, ou no ano seguinte. Se bem conservada, tem vida útil de até 50 anos. Muitos dos assassinatos de hoje são praticados com um ‘três oitão’ comprado na década de 80”, disse.“Uma arma de fogo dentro de casa, em vez do que as pessoas pensam [que ficarão mais seguras], faz aumentar, dependendo do tipo de incidente, de cinco a dez vezes a chance de alguém daquela casa morrer pelo uso daquela arma. Então, aumentam as chances de feminicídio, aumentam as chances de acidentes fatais evolvendo crianças e aumentam as chances de suicídio.” “Isso não se faz, em termos de política de segurança pública, na base de retórica, de achismo. Mas, sim, na base de evidência científica, de gestão feita a partir de um planejamento prévio”, apontou o pesquisador. O presidente do Ipea, Carlos von Doellinger, afirmou, na entrevista coletiva que apresentou o Atlas, porém, ter uma opinião diferente da que o estudo aponta sobre o uso de armas de fogo. “Eu tenho uma pequena descordanciazinha aqui da forma enfática que o estudo aponta sobre o impacto das armas [de fogo] sobre a violência. A minha opinião, e aqui eu falo como indivíduo, não como presidente do Ipea, a mim incomoda a impossibilidade de o cidadão ter uma oportunidade de defesa da sua propriedade, do seu patrimônio e da sua família”, disse o presidente do Ipea. O presidente do instituto enfatizou que os dados são de 2017 e, por isso, não refletem as ações do atual governo. “Mas é óbvio que este relatório mostra tendências. Tendências bastante preocupantes”, disse.
Violência contra negros
O estudo mostra, ainda, um aprofundamento da desigualdade racial nos indicadores de violência letal no Brasil. Em 2017, 75,5% das vítimas de homicídios foram indivíduos negros (a soma de pretos e pardos, segundo a classificação do IBGE, utilizada também pelo sistema do Ministério da Saúde). Os cinco estados com as maiores taxas de homicídios de negros estão localizados na região Nordeste: Rio Grande do Norte, com uma taxa de 87 mortos a cada 100 mil habitantes negros, Ceará (75,6), Pernambuco (73,2), Sergipe (68,8) e Alagoas (67,9).
“A desigualdade racial dos homicídios fica evidenciada no caso de Alagoas. Na última edição do Atlas, já havíamos apontado que esse estado apresentava a maior diferença na letalidade entre negros e não negros. Contudo, este fosso foi ampliado ainda mais em 2017, quando a taxa de homicídios de negros superou em 18,3 vezes a de não negros. De fato, é estarrecedor notar que a terra de Zumbi dos Palmares é um dos locais mais perigosos do país para indivíduos negros, ao mesmo tempo que ostenta o título do estado mais seguro para indivíduos não negros (em termos das chances de letalidade violenta intencional), onde a taxa de homicídios de não negros é igual a 3,7 mortos a cada 100 mil habitantes deste grupo. Em termos de vulnerabilidade à violência, é como se negros e não negros vivessem em países completamente distintos.”
“Claramente, não há como negar o fato de que a letalidade violenta no Brasil está ligada, sobretudo, a uma questão social, a grupos vulneráveis socialmente, que se concentram em determinados territórios. São negros, jovens, de baixa escolaridade. Então, qualquer política de segurança pública que preze esse nome, tem que passar por políticas focalizadas de prevenção social nestes territórios mais vulneráveis e para a juventude”, defendeu Cerqueira.
Violência contra a população LGBTI+
Pela primeira vez, o Atlas fez também um capítulo para mostrar a violência contra lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexuais (LGBTI+).
Apesar de não haver dados do tamanho da população LGBTI+, já que o IBGE não faz nenhuma pergunta sobre orientação sexual, o Atlas usa dados do Disque 100, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, e dos registros administrativos do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde. O relatório mostra um aumento no número de denúncias de homicídios e tentativas de homicídio em 2017.
O Disque 100 analisa e encaminha denúncias de violações de direitos humanos desde 2011. No último ano, diferentemente dos demais grupos, como idosos e crianças, houve crescimento de 127% de denúncias de homicídio contra a população LGBTI+.
O Sinan, que classifica a orientação sexual da vítima, registrou aumento de 10% a 15,7% de casos de violência contra homossexuais e de 30,9% a 35,3% contra bissexuais em 2015 e 2016.
Perfil dos assassinatos no país
O Atlas também traça um perfil dos homicídios no país. Para isso, o estudo analisa os microdados dos 618 mil assassinatos praticados no Brasil entre 2007 e 2017.
O relatório mostra que 92% das vítimas eram homens, e apenas 8% mulheres. A maior parte possuía baixa escolaridade: 74,6% dos homens e 66,8% das mulheres vítimas tinham até sete anos de estudo.
A grande maioria era solteira: 80,4% dos homens mortos e 70,9% das mulheres. No caso dos assassinatos de vítimas do sexo masculino, 76,9% ocorreram por meio de arma de fogo (o percentual é de 53,8% para as mulheres).
O sábado é o dia com a maior frequência de homicídios, tanto para homens como para mulheres. “Isso sugere que uma maior atenção do policiamento preventivo nesse dia poderia ser bastante efetivo”, afirma o estudo.
“Na ausência de uma política nacional de segurança pública, em um país continental como o Brasil, com características tão heterogêneas entre as UFs, em geral, as políticas públicas locais terminam sendo conduzidas pelo empirismo do dia a dia, na base da improvisação e no apagar de incêndio das crises recorrentes, seja em função dos crimes que ocorrem nas ruas, seja dentro dos cárceres, onde há muito o Estado perdeu o controle”, dizem os pesquisadores.
Mas eles ressalvam: “Existem bons exemplos aqui mesmo no Brasil, onde a ação pública parece ter surtido efeito, como em São Paulo, em Pernambuco, no Espírito Santo, na Paraíba, ou em Minas Gerais. Importa estudar e avaliar o que deu ou não deu certo e empregar os instrumentos de gestão científica orientada por resultados e baseada em evidências”.
“Tais políticas não podem abrir mão do conhecimento científico especializado, ainda mais em um cenário de ajuste fiscal severo, em que os recursos escassos devem ser efetivos. Nesse sentido, a presente edição do Atlas da Violência trouxe à tona grandes questões que precisam ser pensadas; a principal delas, passa por estruturar políticas de Estado visando a prevenção social do crime, com ações focalizadas na infância e na juventude, e nos territórios mais vulneráveis.”
6% do PIB usado em ações contra violência
O presidente do Ipea destacou o impacto econômico da violência no Brasil. Com base no estudo, o Ipea apontou que os gastos relacionados à violência correspondem a 6% do Produto Interno Bruto (PIB) do país.”Isso é realmente uma coisa impressionante, extraordinária, e mostra um peso nas costas que temos de carregar dessa face tão cruel”, declarou Carlos von Doellinger. Em 2016, quando o PIB chegou a R$ 6,2 trilhões, o custo da violência chegou a cerca de R$ 373 bilhões. “A gente gasta mais com os efeitos da violência que com a segurança pública”, afirmou Samira Bueno. Este custo da violência considera os custos privados – que incluem os custos intangíveis com homicídios e os gastos com segurança privada e seguros – e as despesas públicas nas áreas de saúde, segurança pública e sistema penitenciário. Os primeiros corresponderam a 4,2%, enquanto os segundos, a 1,7%. Para Doellinger, “esse custo da violência é a mais cruel face do chamado ‘custo Brasil’, que corresponde aos ônus que pesam sobre a atividade econômica do país, como a burocracia e a corrupção, por exemplo.” “A criminalidade passou a ser, há um bom tempo, uma preocupação. Essa vulgarização do crime e do desprezo pela vida humana nos mostra um dado bem ruim da nossa realidade, que precisa ser superado com políticas públicas”, destacou Doellinger. (G1)