Jurassic Park quase acertou. No filme dirigido por Steven Spielberg, cientistas encontram um mosquito perfeitamente preservado em âmbar por milhões de anos. O inseto carrega o sangue de sua última presa: um dinossauro. A partir do DNA do grandalhão, a equipe traz à vida diversas espécies que passam a habitar o parque dos dinossauros.
Não vamos entrar no mérito da desextinção – essa parte é pura ficção mesmo. A imprecisão científica ali foi ainda mais boba: o inseto retratado no filme, Toxorhynchites rutilus, é uma das poucas espécies de mosquitos que não se alimenta de sangue. Só néctar de plantas.
Qualquer outra espécie deixaria o filme (um pouco) mais realista, já que os dinossauros de fato eram picados por mosquitos. O espécime mais antigo conhecido, preservado em âmbar, data de 130 milhões de anos atrás (1) – e os dinos só saíram de cena há 66 milhões de anos.
Em comparação a outras espécies, os mosquitos permaneceram praticamente inalterados durante milhões de anos. Isso mostra que a fórmula deu certo: são um exemplo de sucesso evolutivo. O problema é que esses insetos se associaram a agentes infecciosos – como protozoários, que causam a malária, e vírus – entre eles, os responsáveis por dengue, zika e chikungunya.
Neste momento, o Brasil passa pela maior epidemia de dengue em todos os tempos. O Ministério da Saúde estima que o país chegue a 4,2 milhões de casos em 2024 – até a publicação deste texto, eram 1,2 milhão. Para dar uma ideia, o pior ano da série histórica foi 2015, com 1,7 milhão de casos.
Já o ano mais letal foi 2023, com 1.094 mortes registradas por dengue. Podemos ultrapassar esse número em 2024. Mas agora temos um aliado: em dezembro de 2023, o Brasil se tornou o primeiro país no mundo a disponibilizar uma vacina contra a dengue no sistema público de saúde.
Veja como uma relação “simbiótica” entre o Homo sapiens e o Aedes aegypti criou epidemias de dengue ao longo da história. E por que ficou cada vez mais difícil combater a doença.
Mosquito de estimação
Apenas as fêmeas do Aedes aegypti picam humanos. Elas usam as proteínas presentes no nosso sangue para amadurecer os ovos dentro do organismo. Quatro dias depois da picada, os ovos estão prontos para sair. E a água parada é o “ninho” que a mãe precisa encontrar para botá-los. O macho é o vegano da relação: se contenta apenas com frutas.
Só que nem todas as fêmeas preferem humanos, especificamente. Populações de A. aegypti que vivem nas savanas africanas, por exemplo, se alimentam de outros animais e não mostram interesse especial em nós. Já os mosquitos que vivem nos ambientes urbanos ao redor do mundo se especializaram em seguir nosso cheiro.
Podemos dizer que os humanos “domesticaram” populações de mosquito involuntariamente quando começaram a se organizar de forma mais complexa e (principalmente) armazenar grandes quantidades de água. As primeiras civilizações forneciam um estoque quase inesgotável de sangue e “ninhos” para as fêmeas – e isso fez com que elas se especializassem em nós.
Estudos de 2020 e 2023 sugerem uma hipótese de como isso aconteceu. Sabemos que o Aedes aegypti é originário da África, então os pesquisadores coletaram populações especialistas (que preferem humanos) e generalistas (que picam qualquer animal) por todo o continente. As especialistas se concentram no norte da África, mostrando que a aproximação com humanos provavelmente rolou por ali.
Comparando as mutações genéticas dessas populações, os pesquisadores concluíram que a especialização em humanos ocorreu por volta de cinco mil anos atrás. Nessa época, terminava o “período úmido africano”: por conta de mudanças cíclicas na órbita da Terra, o norte da África tem períodos alternados de umidade (caracterizado por alguma presença de lagos e florestas) e completamente desérticos. Estamos na fase mais seca, e conhecemos a região hoje como deserto do Saara.
Com a mudança de clima, as populações de mosquitos que viviam ali não encontravam mais animais para se alimentar e água para botar ovos. Daí se aproximaram das civilizações humanas, como as que viviam no rio Nilo. Não à toa, o nome Aedes aegypti faz referência ao Egito.
Por meio de registros históricos, sabemos que o espalhamento do mosquito pelo mundo só ocorreu no século 17 – em especial, com o tráfico de escravizados partindo da África para as Américas. O A. aegypti picava a tripulação e colocava os ovos nos barris de água dos navios.
A América do Sul e a Central proporcionaram o ambiente perfeito para o mosquito. A temperatura ideal para o desenvolvimento do Aedes aegypti é de 22ºC a 32ºC (4). Some isso à abundância de chuvas, e dá para dizer que os bichinhos encontraram um continente para chamar de seu.
A erradicação – e a volta da doença
Os mosquitos sempre foram inconvenientes, mas não eram vistos como um problema de saúde pública até o início do século 20. Nos anos 1880, surgiu a hipótese de que o mosquito transmitia o “veneno” da febre amarela – outra doença que uma picada de Aedes pode ocasionar. Na década seguinte, com a descoberta dos vírus, surgiu a hipótese de que o mosquito transmitia o “veneno” da febre amarela – outra doença que uma picada de Aedes pode ocasionar. Na década seguinte, com a descoberta dos vírus,
Os vírus da febre amarela e da dengue inauguraram o conceito de arboviroses – doenças virais transmitidas por artrópodes, como o mosquito. Os vírus se multiplicam no organismo do Aedes aegypti (algo chamado período de incubação extrínseco) e migram para as glândulas salivares do animal. De lá, vão para a corrente sanguínea humana por meio da picada.
O mosquito passou a ser visto como uma ameaça por conta da febre amarela. Faz sentido: apesar do quadro de infecção desconfortável, as pessoas geralmente sobrevivem à dengue. Já a febre amarela é muito mais grave, com letalidade em torno de 40%.
Durante a primeira metade do século 20, o Brasil fez uma grande campanha para eliminar o Aedes aegypti, encabeçada inicialmente pelo médico sanitarista Oswaldo Cruz. Apesar das boas intenções, os métodos eram questionáveis: as brigadas sanitaristas entravam nas casas à força para eliminar qualquer foco do mosquito.
Nos anos 1940, um pesticida barato e eficaz chamado DDT surgiu como uma bala de prata para eliminar o inseto. Nas décadas seguintes, porém, descobriu-se que o composto é cancerígeno e maléfico para outras espécies da flora e fauna. Hoje, ele é proibido em diversos países, incluindo o Brasil.
Fontes: Gabriel Lopes, pesquisador da Casa de Oswaldo Cruz em história da ciência e da saúde; Ricardo Lourenço de Oliveira, pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz em mosquitos e arboviroses; Francisco Chiaravalloti, professor do Departamento de Epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da USP; Livro “O mosquito: A incrível história do maior predador da humanidade”.
Superinteressante / por Maria Clara Rossini