O coronavírus restaurou um senso de igualdade entre as pessoas ao salientar o que temos em comum: a fragilidade humana. De um ponto de vista abstrato, faz sentido. Materialmente, no entanto, o que se observa é que a covid-19 vem exacerbando desigualdades. Enquanto as vítimas de áreas abastadas surgem aos poucos e dispersas, por negligência à quarentena, nas periferias o povo se vê em uma guerra em que dois soldados de uma mesma equipe podem acabar morrendo dentro de um mesmo quarto.
Muitos já desistiram do presidente, mas nem mesmo os governadores e prefeitos mais dedicados a vencer essa guerra conseguiram oferecer soluções que deem conta da realidade desigual, complexa e bastante particular de nosso país.
O problema é evidente: enquanto observamos bairros nobres parados, com a quase totalidade de seus moradores confinados em casa, muitas das favelas do país notaram apenas uma pequena redução em suas atividades. Isso se dá, ao menos em parte, porque 47% dos trabalhadores destas comunidades são autônomos e outros 8% informais. Para eles, parar de trabalhar significa abdicar de sua renda, decisão que a imensa maioria não pode se dar ao luxo de tomar. De acordo com pesquisa do Data Favela, 72% dos residentes dessas comunidades não têm reservas de dinheiro o suficiente para manter seu já baixo padrão de vida por sequer uma semana.
Se a poupança dos moradores das favelas é insuficiente para sustentar seus custos de vida habituais, que dirá então para arcar com as despesas adicionais que estão sendo impostas em decorrência da pandemia. Além de maiores gastos com remédios e produtos de higiene, muitos estão tendo que financiar refeições extras para seus filhos, que antes se alimentavam nas escolas. Há casos, ainda, de pais que, sem poder parar de trabalhar para cuidar das crianças em casa, estão tendo que custear creches particulares, uma vez que as públicas foram paralisadas.
Colocar luz sobre essa realidade não visa concordar com o ideia que chegou a ser defendida por nosso desastroso presidente de que escolas e creches públicas deveriam seguir funcionando. Muito menos sustentar que não há nada a ser feito para a proteção da população a não ser deixar que aqueles que precisam de renda sigam trabalhando. Tais absurdos acarretariam na disseminação massiva da doença, potencializada pela limitação dos equipamentos de saúde, falta de saneamento básico, abastecimento de água intermitente e precariedade das condições de moradia que assolam as favelas.
Para se ter uma ideia, em São Paulo, bairros periféricos como Brasilândia e Capão Redondo possuem menos de 0,05 leitos hospitalares por mil habitantes, enquanto em bairros centrais como Bela Vista e Jardins esse número é maior do que 30 por mil habitantes. Adotar a lógica do laissez-faire nas comunidades periféricas seria homicida.
É necessário, portanto, pensar em soluções que conversem com a realidade das favelas. O projeto da Renda Básica Emergencial, que entrou em vigor esta semana, é, sem dúvida, um grande avanço na direção correta. Vale ressaltar, no entanto, que algumas dificuldades na obtenção do auxílio evidenciam que ainda há certo descompasso entre nossos governantes e a realidade das periferias. Um fato que chama atenção, por exemplo, é o de a forma preferencial de cadastro para o recebimento do benefício ser online, em um país no qual cerca de 20% da população não tem acesso à Internet em seus domicílios. De forma, geral, contudo, a Renda Básica Emergencial parece ser a solução mais eficiente de garantir que os moradores das periferias fiquem seguros em suas casas, protegendo a si e às suas comunidades.
Há, porém, ainda muito a ser feito. Além da garantia de renda, são necessárias respostas a outros problemas que vêm sendo enfrentados pelas favelas e que tendem a intensificar a crise. A garantia de acesso à água corrente, a distribuição de produtos de higiene e alimentos dentro da própria comunidade, evitando deslocamentos desnecessários, e a reserva de quartos de hotel para pessoas pertencentes a grupos de risco que não podem ficar isoladas em suas próprias casas são apenas algumas das soluções que precisam começar a avançar para garantir segurança às comunidades periféricas.
Colocar em prática todas elas, é claro, trará custos significativos ao Estado. Contudo, se o aumento de gastos, até ano passado, parecia imprudente, hoje ele é tido como única solução possível pela maioria da população e dos economistas. Mais absurdo que aumentar despesas, nesse momento, seria acreditar que as soluções, até agora propostas para o centro, servirão à periferia, largando as favelas à própria sorte e entregando as periferias das grandes cidades, de bandeja, para um doloroso destino. (El Paris)
Samuel Emílio nasceu na periferia de Ipatinga (MG), trabalha desde os 6 anos, foi o primeiro de 40 primos a entrar em uma universidade pública. Com 23 anos, é formado em engenharia, coordenador nacional do movimento Acredito e de diversidade e inclusão na Tribo. Fundou a plataforma Engaja Negritude, da Educafro, foi embaixador do Teach For All no Brasil, é Fellow do Programa ProLíder, do Guerreiros Sem Armas e da Arymax. Tem como propósito de vida reduzir as desigualdades do país.