Ennio Morricone gostava de trabalhar os “sons da realidade”

Ennio Morricone conduz orquestra durante concerto em Milão 16/12/2006 REUTERS/Alessandro Garofalo Foto: Reuters

Ele tinha 91 anos e estava em plena atividade. O genial compositor italiano Ennio Morricone, que revolucionou a trilha sonora do cinema, concedeu uma entrevista à AFP em novembro de 2018 sobre sua educação artística e a liberdade de compor, antes de uma apresentação em Paris que era parte de sua turnê de despedida do público.

“Il Maestro”, como exigia ser chamado pelos jornalistas durante as entrevistas, morreu em Roma nesta segunda-feira aos 91 anos.

Há pouco tempo começou a dar concertos. O que isso significa para você?

Foi preciso que pedissem. Até então, eu não tinha percebido a necessidade do público em estabelecer contato comigo, com o desejo de descobrir meu trabalho ao vivo. Quis saber como seria e gostei.

Você apenas dirige suas próprias composições. Você nunca quis interpretar as dos outros?

Não, nunca me interessei. Não as conheço tão bem como as minhas, embora as admire.

Como se desenvolveu sua educação musical?

Me serviu um exemplo: quando eu estava no conservatório, conhecia um estudante que admirava, até o limite da obsessão, a obra de Giovanni Pierluigi de Palestrina, um compositor do Renascimento. Essa paixão lhe impediu avançar em sua própria formação, crescer como compositor. Quis evitar isso. Estudei as correntes clássicas, da Idade Média aos contemporâneos. Claro que eu gostei de muitas coisas, mas me abstive de me apaixonar. De modo que ninguém me influenciou de forma particular.

Quando criança, você frequentava a mesma escola que Sergio Leone. Como vocês voltaram a conviver no cinema?

Estivemos na mesma classe durante um ano, depois nos perdemos de vista durante muitos anos. Desconhecia no que ele havia se tornado. Ele viu meu nome nos créditos de um filme que havia composto a música. Veio a minha casa e me falou de seu projeto. Se tratava de Por um Punhado de Dólares.

Como vocês trabalhavam juntos?

Falávamos com muita antecipação. Mas embora Leone me explicasse como seria seu filme, ele não me dava ordens. Era eu que o explicava o que tinha em mente, segundo o que ele me descrevia. Raras foram as vezes que ele me disse “não, eu preferiria isso, e não aquilo”. Depois dessa primeira trilha sonora, ele me pediu para fazer algo similar para Por uns Dólares a Mais. Aceitei. Mas, para o terceiro filme, Três Homens em Conflito, me opus. Disse a ele: “Não quero que a gente trabalhe assim. Não quero me repetir, me deixe fazer o que quiser”. E acho que fiz bem.

Com base em sua música, que você mostrava antes das filmagens, Leone às vezes reescrevia algumas cenas…

Aconteceu várias vezes. Para a sequência de abertura de Era uma vez no Oeste, em que o homem da gaita (Charles Bronson) é esperado por aqueles que querem eliminá-lo, Leone modificou seus planos e a localização da câmera em função da minha música.

Você inovava muito para a época, incluindo sons inabituais nas músicas de filmes, como assobios, sinos e guitarra elétrica. Você tinha liberdade total?

Não era tão difícil convencer os diretores. Sabiam que eu não me interessava em criar composições tradicionais, por isso também me procuravam. Eu gostava de trabalhar o som da realidade, o que ouvimos todos os dias. Esses ruídos que nos cercam têm sua própria música e poderiam compor outra comigo.

Estadão / Redasda

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