“Diziam que o diabo botava isso na gente”. “A psicóloga perguntou se eu havia sido estuprado na minha infância”. “Ouvi que era coisa de pai muito ausente”.
Os relatos integram o livro “Tentativas de Aniquilamento de Subjetividades LGBTIs”, lançado em 2019 pelo Conselho Federal de Psicologia.
A obra ouviu 32 pessoas apontadas como doentes e obrigadas pela família a passar por “sessões de cura” em consultórios e comunidades terapêuticas para deixarem de ser lésbicas, gays, bissexuais, trans, travestis e intersexo.
Neste domingo (17), faz 30 anos que a OMS (Organização Mundial da Saúde) retirou o homossexualismo (o sufixo “ismo” refere-se a doença na medicina) da 10ª edição da CID, sigla em inglês para Classificação Estatística Internacional de Doenças.
Antes da mudança, a homossexualidade (o sufixo “dade” significa comportamento) estava no mesmo patamar de transtornos como a pedofilia.
Em 1973, a Associação Americana de Psiquiatria já havia banido a homossexualidade de sua lista de distúrbios.
No Brasil, a medida foi tomada pelo Conselho Federal de Medicina em 1985, após pressão do Grupo Gay da Bahia, conta Luiz Mott, fundador da instituição. “Fizemos um abaixo-assinado, que recolheu 16 mil assinaturas numa época em que só havia fax.”
O 17 de maio virou o Dia Internacional Contra a Homofobia e a Transfobia.
A antropóloga Regina Facchini, pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu, da Unicamp, explica que a OMS despatologizou a homossexualidade, mas deixou um resíduo. “Ficou em aberto a possibilidade de as pessoas que não se sentirem confortáveis com sua homossexualidade procurarem tratamento.”
Para a OMS, essas pessoas sofriam de orientação sexual egodistônica. No ano passado, a entidade tirou da egodistonia o status de transtorno psíquico quando baniu a transexualidade de seu novo cadastro de patologias, que passa a valer em janeiro de 2022.
Desde 1999, os psicólogos são obrigados a cumprir a resolução 001 do Conselho Federal da categoria, que proíbe terapias de reversão sexual em pessoas LGBTIs. Para a entidade, não é possível curar uma doença que não existe.
Mas, por causa da brecha deixada pela OMS, psicólogos religiosos conseguiram nos tribunais aval para fornecer a chamada “cura gay”.
O grupo Psicólogos em Ação obteve na Justiça Federal do Distrito Federal uma liminar em setembro de 2017 e uma sentença favorável três meses depois expedida pelo juiz Waldemar de Carvalho.
No seu despacho, Carvalho negou cassar a resolução 001, mas entendeu que não poderia deixar “desamparados os psicólogos que se dispunham a estudar e aplicar suas técnicas àqueles que procurarem suporte no enfrentamento de seus mais profundos sofrimentos relacionado à orientação sexual egodistônica”.
Psicólogos também se alinharam a políticos evangélicos para tentar implantar a medida. De ao menos cinco iniciativas apresentadas na Câmara Federal, entre 2005 e 2016, uma está em tramitação e as demais foram arquivadas.
Cris Serra, que pesquisa religião e sexualidade na Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), vê na pressão de mercado um dos pilares de sustentação da “cura gay”. “As comunidades terapêuticas fazem, na clandestinidade, esses atendimentos”, diz.
A “cura gay” foi um serviço legalmente fornecido no Brasil de setembro de 2017 até abril de 2019, quando a ministra Cármen Lúcia, do STF, deu liminar a um pedido do Conselho Federal de Psicologia para que a resolução 001 fosse novamente cumprida à íntegra. Em janeiro deste ano, a ministra suspendeu a tramitação da ação popular do grupo Psicólogos em Ação.
Para Pedro Paulo Bicalho, presidente do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro, o desconforto sentido por uma pessoa LGBTI não é um problema dela, mas social.
“Essa sensação de rejeição em relação à própria sexualidade é o efeito mais direto que uma pessoa não heterossexual vive na sociedade LGBTfóbica brasileira”, diz.
A reportagem procurou o Psicólogos em Ação, que não respondeu aos pedidos de entrevista.
O cientista social Alexandre Oviedo, que analisou controvérsias no discurso da “cura gay” promovida por 19 organizações que trabalham em igrejas, diz que elas buscam um verniz científico nos seus discursos e ligar a homossexualidade a abusos na infância ou família desestruturada.”
Para o advogado Renan Quinalha, da Unifesp, o movimento LGBTI tem um desafio:”se reinventar quando falta espaço”. (BN)