Todos os dias inalamos milhares de esporos de fungos potencialmente patogênicos, mas nosso sistema imune simplesmente os elimina. Em pessoas que estão com a imunidade comprometida – como transplantados, pacientes em tratamento contra o câncer ou internados em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) –, porém, essa interação entre patógeno e hospedeiro pode ser bastante diferente.
Um exemplo são os casos de infecções fúngicas que emergiram durante a pandemia de COVID-19 e potencializaram a ação do SARS-CoV-2 no planeta. Entre os pacientes acometidos com a forma grave da COVID-19 e simultaneamente infectados pelo fungo Aspergillus fumigatus, a mortalidade chegou a 80%.
Um grupo internacional de pesquisadores realizou um apanhado da carga dessas coinfecções (coronavírus e fungos) no mundo durante a crise sanitária. O trabalho foi publicado na Nature Microbiology e traz alertas para essa e futuras pandemias.
“A questão central dos fungos é que eles são um problema de saúde pública extremamente negligenciado, com poucas opções de tratamento. Atualmente, existem mais casos de mortes causadas por doenças fúngicas do que por malária e tuberculose juntas, por exemplo. Não é surpreendente, portanto, que as doenças fúngicas tenham tirado vantagem de tantas pessoas internadas por conta da COVID-19”, afirma Gustavo Henrique Goldman, professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FCFRP-USP) e um dos coordenadores do estudo, que contou com apoio da FAPESP.
Além da aspergilose, doença causada por fungos do gênero Aspergillus, dois outros grupos causam infecções simultâneas à COVID-19. Os Mucorales são responsáveis pela mucormicose, ocorrida sobretudo na Índia e no Paquistão. As leveduras do gênero Candida, por sua vez, causam a candidíase e estão presentes em praticamente todo o planeta.
“A aspergilose associada à COVID-19 [condição denominada CAPA, na sigla em inglês] afeta em média 10% dos pacientes com insuficiência respiratória aguda admitidos em UTI. Portadores dessa coinfecção têm duas vezes mais chances de um desfecho fatal do que indivíduos apenas infectados pelo SARS-CoV-2”, informa à Agência FAPESP Martin Hönigl, professor da Universidade da Califórnia San Diego, em La Jolla, nos Estados Unidos, e da Universidade de Graz, na Áustria, primeiro autor do estudo.
Perdas e ganhos
Segundo o artigo, a aspergilose pode se limitar às vias aéreas superiores por muitos dias e ser contida com antifúngicos. Uma vez que invade os vasos sanguíneos do pulmão, porém, a mortalidade é maior do que 80%, mesmo se administrada terapia antifúngica sistêmica.
Ocorrida quase exclusivamente em pacientes em UTIs, a candidíase não é mais frequente em pacientes de COVID-19 do que em internados por outras razões. No entanto, os fungos de uma nova espécie emergente, a Candida auris, preocupam por serem capazes de colonizar a pele. Parecem também ser os únicos transmitidos de uma pessoa para outra. Essa espécie é resistente a todos os antifúngicos conhecidos e, por estar presente em diversos ambientes, pode facilmente chegar a pacientes com sondas, respiradores e outros equipamentos invasivos de suporte à vida presentes em hospitais (leia mais em: agencia.fapesp.br/35923/).
Já a mucormicose associada à COVID-19 (CAM, na sigla em inglês) é um problema grave particularmente na Índia, onde o número de casos dobrou em relação ao período anterior à pandemia. Os relatos dessa micose ganharam atenção internacional em 2021, quando foram notificados naquele país mais de 47,5 mil casos apenas entre os meses de maio e agosto. Considerada, na ocasião, uma epidemia pelo governo indiano, a mucormicose foi erroneamente chamada de “fungo negro”, por conta do aspecto do tecido humano necrosado decorrente da doença. Os fungos negros, na verdade, fazem parte de um outro grupo, relativamente distante dos Mucorales, e não causam doença em humanos.
Nos pacientes com COVID-19, a mucormicose frequentemente ocorre na região dos olhos e nariz, podendo chegar ao cérebro. Nesses casos, a associação das duas doenças tem mortalidade de 14%. Por causar necrose, em muitos casos a infecção exige cirurgias que desfiguram os pacientes. Quando sobrevivem, podem perder porções do rosto, enfrentando diversos problemas para o resto da vida. Quando a infecção fúngica afeta o pulmão ou se dissemina pelo organismo, a mortalidade chega a 80%.
“A prevalência dessa micose na Índia foi de 0,27% em pacientes hospitalizados com COVID-19, embora ela possa ocorrer frequentemente em pacientes fora do hospital, como aqueles tratados em casa com doses muito altas de corticosteroides sistêmicos, facilmente disponíveis para a população daquele país”, conta Hönigl.
O uso dessa e de outras classes de medicamentos que diminuem a atividade imune é uma das causas do aumento das infecções fúngicas no mundo todo. No entanto, a estratégia se mostrou bem-sucedida durante a pandemia, com os benefícios superando os riscos. Os pesquisadores alertam, porém, para a importância de evitar a administração abusiva de fármacos imunossupressores.
Como alternativa, durante a pandemia, alguns centros com alto risco de aspergilose implementaram com sucesso a profilaxia antifúngica, com a administração de medicamentos antes mesmo da infecção por esses agentes. Mas como os fungos muitas vezes são resistentes à maior parte dos medicamentos disponíveis e não há estudos clínicos suficientes para avaliar essa estratégia, atualmente ela não é recomendada.
“Os imunossupressores são um grande avanço na medicina, possibilitando que muitas pessoas deixem de morrer de câncer, de doenças autoimunes e mesmo que recebam órgãos de outras pessoas”, esclarece Goldman.
“Como efeito colateral, seu uso aumentou em muito a incidência de infecções fúngicas. Com exceção de alguns fungos termotolerantes como A. fumigatus, os fungos normalmente não suportam a temperatura corporal dos mamíferos e são facilmente combatidos pela nossa imunidade inata, mas com a redução da atividade imune para lidar com doenças altamente inflamatórias, como a COVID-19, abre-se um flanco para eles atacarem”, diz.
Novos medicamentos
O aquecimento do planeta também abre caminho para que muitos fungos se adaptem às temperaturas mais altas, tornando os humanos mais vulneráveis. Por isso, os especialistas concordam que é urgente o desenvolvimento de novas drogas antifúngicas. Atualmente, existem apenas quatro classes desses medicamentos, em comparação às dezenas de diferentes classes apenas de antibacterianos, por exemplo.
Outro problema é a dificuldade de diagnóstico, que pode ter custo muito elevado para os padrões de países de renda baixa e média ou não pode ser feito na velocidade necessária para apontar o tratamento ideal.
Para atestar com 100% de certeza a presença de uma aspergilose, por exemplo, é necessário um exame de broncoscopia – algo considerado muito arriscado durante a pandemia de COVID-19. Isso porque a quantidade de fluidos humanos expelida durante o procedimento é mais do que suficiente para transmitir o SARS-CoV-2 para a equipe médica e por isso o teste foi evitado. Tal fato sugere que as estatísticas sobre essa infecção estejam subestimadas.
“Felizmente, há boas notícias quanto ao desenvolvimento de medicamentos nessa área, com várias novas classes de antifúngicos em testes clínicos de fase 2 e 3”, afirma Hönigl.
Os pesquisadores temem, porém, que essas novas drogas não cheguem a todos que precisam e os tratamentos de ponta sigam restritos aos países ricos, continuando a desigualdade existente na disponibilidade desses medicamentos.
“Nesse cenário de aquecimento global, poucas drogas disponíveis e doenças que debilitam e causam epidemias e pandemias, novos surtos de infecções fúngicas voltarão a acontecer. É preciso ter mais ferramentas para controlá-las e mais pesquisadores para estudar os diferentes fungos e seus mecanismos de ação”, conclui Goldman. (FAESP)