Da mesma forma que a Lavagem do Senhor do Bonfim é considerada como a inauguração do calendário político na Bahia, outra festa popular é historicamente utilizada como um termômetro de popularidade daqueles que estão na vida pública: o Dois de Julho. A data, cívica com ares de festa popular, ao longo dos anos se transformou também em uma oportunidade para que homens públicos tivessem um contato mais próximo com o povo. A participação de governantes no Dois de Julho começou em meados do século XIX, quando os governantes passaram a participar da sessão solene e a desfilar à frente dos carros emblemáticos do Caboclo e da Cabocla. Foram nos últimos 30 anos, no entanto, que a política ganhou força na festa. “A participação dos políticos varia de período a período. Tiveram épocas de maior participação e outras de menor participação. Nos últimos 30 anos essa participação está mais forte”, diz o cientista político Joviniano Neto. No começo, o espaço era utilizado pelo governador e o prefeito mas, posteriormente, passou a ser utilizado também por postulantes à cargos políticos que viam o evento como uma vitrine.
A influência da política para a festa é tão grande que no fim do século XX, de acordo com Joviniano Neto, conflitos políticos levaram à mudança da data do Te Deum, um hino da Liturgia das Horas, rezado nos domingos e dias solenes em ação de graças, para o dia 1º de julho. Antes, ele era celebrado no dia Dois de Julho ao mesmo tempo em que o desfile acontecia. “O cortejo é a reprodução da caminhada do Exército Libertador em Salvador, em 1824. No primeiro ano as pessoas resolveram fazer de novo aquele percurso até o Centro Histórico. Isso passa a ser organizado por uma comissão organizadora dos festejos, formada por veteranos da guerra, e as autoridades começaram a ir ao evento”, afirmou.
A era ACM
Nesse período, o campeão de presença em desfiles de Dois de Julho, de acordo com o coordenador de cultura do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, Jaime Nascimento, foi o ex-senador ACM, que foi governador da Bahia em três mandatos (1927-2007) e ainda participou de desfiles de seus sucessores, como o ex-governador Paulo Souto, por exemplo. “Muita gente enlouquecia quando via ACM. Muita gente era louca por ele e ia até o cortejo somente para vê-lo, assim como acontecia na Lavagem do Senhor do Bonfim. Nos últimos tempos, ele foi o que mais esteve presente e muita gente utilizava disso também para ‘sugar’ a popularidade dele”, afirmou o historiador Jaime.
Além de ser bastante assediado pela população durante seu trajeto, através do pedido de abraços e beijos ou um simples aceno de mão, muitas pessoas estampavam o amor por ACM em faixas móveis e afixadas em fachadas ao longo do percurso. O cientista político Cloves Oliveira, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), afirmou que o ex-senador ajudou a construir o discurso de baianidade através de um apelo ao sentimento de pertencimento ao estado da Bahia, a partir dos anos 70, o que casou com sua presença nos eventos populares.
“Ele participava da Lavagem do Senhor do Bonfim, que é uma festa religiosa, mas a do Dois de Julho traz uma mensagem ainda mais forte porque a festa celebra a Independência da Bahia e também é um evento cívico muito marcante que reforça o caráter da cultura baiana e afro brasileira. Ele conseguia fazer deles um ato de declaração de apoio a sua personalidade e rivalizava com aqueles que se diziam antagonistas de seu grupo”, afirmou Oliveira.
O presidente da Rede Bahia, Antônio Carlos Júnior, ressaltou que ACM marcou presença no Dois de Julho desde 1967, quando assumiu a Prefeitura de Salvador. À época, o presidente do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia era seu pai, Francisco Peixoto de Magalhães Neto. “Acho que a partir desse período, até mesmo pela popularidade de ACM, verificada nos desfiles, os políticos passaram a dar mais atenção à festa, fazendo com que o evento se tornasse oportunidade para contato com o povo”, afirmou Antônio Carlos Júnior.
“É a principal data da Bahia. O dois de julho é o momento em que a gente homenageia a nossa história, homenageia não apenas o passado mas o presente. E se compromete com o futuro”, destaca o prefeito ACM Neto. Segundo ele, o Dois de Julho sempre representou um momento especial, muito antes da sua vida pública. “A Bahia tem uma coisa muito forte que é a sua história, a valorização de seu patrimônio imaterial, e o Dois de Julho é nosso orgulho, a data que consolidou a Independência do Brasil e é por isso que todos nós sempre rendemos homenagens a essa data”, afirma o prefeito.
Liturgia
Para além da questão política, aqueles que conviviam com o ex-senador ACM e participaram do desfile ao seu lado afirmam que ele fazia questão de participar e estar em contato com o povo.”Ele tinha uma uma aproximação com o povo que era muito dele e esse momento do dois de julho era muito propício para isso. Ele estava sempre olhando para cima, para quem estivesse nas casas do trajeto, acenando para as pessoas. Além disso, ele também gostava muito de transitar pelo desfile. Ele não gostava de ficar no centro da rua, ia para o lado abraçar e beijar as pessoas”, contou o ex-governador Paulo Souto, hoje secretário municipal da Fazenda (Sefaz). Nem mesmo as críticas abalavam a boa vontade e felicidade do ex-senador. Souto conta que eles estavam em um período de alta aprovação diante da população, mas alguns “grupos pequenos” iam para criticá-los. Mesmo quando alguém falava algo contra ele, ele soltava beijos e ria, lembra.
“Antônio Carlos era muito ligado à coisas, às raízes da Bahia, então nada simbolizava mais isso que o Dois de Julho. Ele se dedicava integralmente a participar desse desfile. Até mesmo quando ele já estava com a idade avançada – e eu como governador ficava muito preocupado com isso –, ele teimava e participava integralmente dos desfiles”, contou Souto. Souto conta que ele não exigia de ninguém a presença no evento. “Ele até pedia que os políticos fossem, mas vamos combinar que ele era a atração ali. As pessoas até iam, mas a estrela era ele”, disse. Ex-morador do Barbalho, ACM conhecia todos no caminho. Parava em cada uma das janelas, fazendo questão de chamar todos pelo nome. Os mais próximos diziam que as reações do ex-senador eram um termômetro para seus aliados. Um leve tapinha no rosto após a caminhada era sinal de afeição.
Arena
O cientista político Joviniano Neto destacou que o Dois de Julho é político desde sua primeira manifestação. “A guerra de Independência da Bahia foi uma grande manifestação política que reuniu povos inteiros. O evento cívico e popular surgiu no ano seguinte para manifestar a importância da participação do povo, que desfilou pelo mesmo caminho. Nos primeiros anos, os populares eram reprimidos, depois o estado assumiu e os governantes passaram a participar”, explicou. Além de um momento de afirmação popular, o evento passou a ser um espaço de apresentação dos políticos. “Acabou que eles passaram a apresentar a sua força nos eventos, levando os seus grupos para mostrar coesão, presença, muitos com camisas e bandeiras, como um time”, afirmou Joviniano.
O cientista político Cloves Oliveira, professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA), destacou que a simples presença dos políticos no evento pode provocar sentimentos na população ou produzir conteúdos para divulgação. “É um momento em que eles têm condições de, junto com seus grupos políticos, de desfilar nas ruas de Salvador e a presença deles pode provocar sentimento de rejeição ou endosso à sua presença e às políticas que eles vêm desenvolvendo”, destacou.“Os eventos públicos são capazes de despertar a atenção do público, mas também de gerar imagens e conteúdos que permitem que eles mesmos contem a história a partir de sua versão, o enquadramento sobre a perspectiva dele. Então isso também os auxilia nesse sentido”, acrescentou.
De acordo com Clóves Oliveira, no Dois de Julho, o espaço público vira uma “arena” pública de embate e posicionamento público e o posicionamento entre grupos rivais existe e é caracterizado através de emblemas, símbolos que são expostos para a sociedade e ostentados perante o grupo rival. De acordo com os especialistas ouvidos pelo CORREIO, os anos eleitorais costumam ser mais preenchidos de embates propriamente ditos. Além do uso de mais materiais de publicidade, como cartazes, há um acirramento dos ânimos entre os grupos políticos, que estão, agora oficialmente, em uma disputa. (Correios)