A imagem do policial branco Derek Chauvin empurrando com o joelho o pescoço do negro George Floyd contra o asfalto de Minneapolis até sufocá-lo é um retrato tão icônico quanto perverso do racismo estrutural que atravessa a história e as instituições dos EUA, e da persistente desigualdade racial que deriva dele.
Antes de morrer, na última segunda (25), Floyd avisou aos policiais que não conseguia respirar. O registro da ação policial feito por testemunhas viralizou, causando revolta e uma onda de protestos que adentraram a terceira noite, na quinta-feira (28), com manifestantes ateando fogo a uma delegacia da maior cidade do estado de Minnesota.
O governador, Tim Walz, e os prefeitos de Minneapolis, Jacob Frey, e da vizinha St. Paul, Melvin Carter, decretaram toque de recolher a partir das 20h desta sexta-feira (22h em Brasília).
Apenas socorristas, jornalistas e pessoas que vão ou voltam do trabalho poderão circular. Quem violar as regras pode ser preso, segundo Walz. Em Minneapolis, a medida valerá também para o sábado (30) e o domingo (31). Carter afirmou que pode estender o toque de recolher até segunda-feira (1º) se os protestos continuarem na mesma toada.
Mais cedo, diante da escalada dos protestos, o presidente Donald Trump criminalizou os manifestantes, que chamou de “bandidos”. Numa mensagem no Twitter, ele colocou os militares à disposição do governador de Minnesota e lançou uma ameaça: “quando os saques começam, os disparos começam”.
A postagem recebeu um selo de violação das regras do Twitter sobre enaltecimento à violência, mas foi mantida pela rede social por ser “de interesse público”.
Lori Lightfoot, a prefeita negra de Chicago, uma das cidades mais segregadas racialmente dos EUA, declarou que o post de Trump “fomenta a violência” e, exacerbando-se, falou que gostaria de dizer duas palavras ao presidente: começa com “F” e termina com “you”. Não é preciso muita imaginação para ligar os pontos.
Em uma entrevista coletiva na tarde de quinta, Trump simplesmente ignorou os protestos e o assassinato de Floyd.
Já o ex-presidente Barack Obama, o primeiro e único negro a ocupar a Casa Branca, declarou em nota que a morte de Floyd não pode ser considerada normal. Obama exortou os americanos a trabalharem juntos para “criar um ‘novo normal’, no qual o legado de intolerância e de tratamento desigual deixe de infectar nossas instituições”.
O também democrata Joe Biden, candidato do partido na corrida presidencial de novembro, defendeu uma reforma das forças policiais em um vídeo divulgado pouco antes da prisão de Derek Chauvin, na tarde de sexta (29). “Nenhum de nós pode ouvir essas palavras – ‘eu não consigo respirar’ – e não fazer nada.”
Chauvin, que já havia sido demitido da corporação, foi preso sob a acusação de homicídio culposo (sem a intenção de matar). O policial tinha histórico problemático: havia sido objeto de 18 inquéritos disciplinares, 16 dos quais foram encerrados sem nenhum tipo de punição.
Sua vítima, George Floyd, 46, havia perdido o emprego como segurança em um restaurante por conta das medidas de isolamento social para conter a pandemia do coronavírus. Nascido em Houston e conhecido pelos amigos como “Gigante gentil”, Floyd foi acusado de assalto a mão armada em 2007 e, em 2009, foi condenado a cinco anos de prisão como parte de um acordo judicial.
Ao deixar a prisão, em 2014, mudou-se para Minneapolis em busca de trabalho e passou a atuar como segurança. Na última segunda-feira (25), a polícia foi chamada por um funcionário de uma loja que dizia que Loyd tentara fazer uma compra com uma nota falsa de US$ 20.
A polícia alegou que ele resistira à prisão. As imagens da ação policial mostram o gigante imobilizado.
“O abuso em Minnesota é típico, mas é também mais sério que tantos outros porque ficou evidente o longo processo de sufocamento de Floyd”, avalia Paul Chevigny, professor aposentado da New York University e pioneiro no estudo da violência policial. “Ele é parte de uma falha sistêmica, em que autoridades municipais e estaduais deixaram repetidamente de punir policiais nesses casos devido à pressão das corporações e de políticos para liberar os oficiais.”
Segundo ele, “é necessária uma política sistemática e transparente de que más condutas não serão toleradas” para que mortes como a de Floyd deixem de acontecer. “Isso não pode ser feito da noite para o dia e, muitas vezes, não é algo popular entre as pessoas que pensam que a polícia deve ter uma ‘mão dura’, como se diz na América Latina.”
Para Chevigny, quando os abusos policiais produzem revoltas nos EUA é porque a ação policial é a gota d’água de um extenso padrão de discriminação.
Como episódio icônico, o assassinato de George Floyd não poderia ter ocorrido em local mais significativo: o estado de Minnesota é um dos mais desiguais dos EUA, segundo critérios de raça. Ainda que os negros que vivem ali tenham parâmetros muito semelhantes aos dos negros do restante do país, dados da agência de estatísticas dos EUA, o Census Bureau, apontam que o abismo entre brancos e negros é especialmente pronunciado naquela região.
No estado, por exemplo, a taxa de pobreza entre negros (32%) era quatro vezes a de brancos (7%) em 2017, a taxa de desemprego (8%) era mais que o dobro da de brancos (3%), e enquanto 76% dos brancos tinham a posse do próprio domicílio, entre negros esse percentual era de apenas 24% –a terceira maior diferença do país.
Estudos apontam que uma série de privilégios institucionais concedidos a pessoas brancas no estado estão na raiz de tamanhas diferenças entre os dois grupos raciais.
Cruzando dados de renda, educação e Justiça, um relatório do site 24/7 Wall St. apontou as duas maiores cidades de Minnesota, Minneapolis e Saint Paul, que agora ardem nas chamas dos protestos, como a quarta pior cidade dos EUA para pessoas negras.
Seus moradores já estavam familiarizados com esse tipo de morte prematura e criminosa. “A violência policial é uma realidade por aqui há 20 anos. Mas ela tem sido especialmente pronunciada nos últimos cinco anos, ao longo dos quais uma série de homens negros desarmados foram alvejados por policiais brancos”, conta Keith Mayes, professor de história afro-americana da Universidade de Minnesota. “O caso de George Floyd é apenas o exemplo mais recente de algo, infelizmente, comum.”
Em 2015, Jamar Clark, um jovem negro de 24 anos, foi morto desarmado por um disparo de um policial, que depois foi considerado inocente. Em 2016, o policial Jeronimo Yanez matou Philando Castile, um homem negro de 32 anos, numa ação registrada pela namorada da vítima, que causou comoção nacional. Yanez foi inocentado pelo júri.
Por outro lado, um policial negro que matou uma mulher branca em 2017 está cumprindo 12 anos e meio de prisão no estado.
“O caso de Floyd parece seguir o mesmo script de sempre: um homem negro morto por um policial branco, que é levado aos tribunais, mas termina inocentado”, avalia Mayes. “Mas é aqui que entra a diferença deste caso porque ele gerou uma revolta que não vimos antes. As pessoas estão cansadas desse enredo.”
Para ele, as declarações de Trump sobre os protestos não surpreendem. “Trump se alinha a certo tipo de terrorismo policial que prejudica tanto as comunidades negras. Mas que ele não se engane: com ou sem a Guarda Nacional ou os militares, as pessoas vão continuar indo para as ruas. O movimento negro tem essa tradição de não sofrer calado.”
O caso de Floyd lembra tantos outros que, sete anos atrás, provocaram a criação do Black Lives Matter (BLM), um slogan, vidas negras importam, que se tornou a maior articulação do movimento negro contemporâneo nos EUA.
Patrisse Cullors, uma das três fundadoras do BLM, avalia que, para além de uma “tristeza profunda”, o episódio de Minneapolis suscita uma série de debates sobre o racismo das instituições norte-americanas. “Temos que falar sobre como são investidos quase US$ 100 bilhões em policiamento, mas nos dizem não haver financiamento para a saúde universal neste país em meio a uma pandemia, justamente quando os relatórios mostraram que os negros são impactados pela Covid-19 a taxas desproporcionais.”
Segundo Cullors, tanto a morte de Floyd quanto as vítimas negras da pandemia estão “inegavelmente ligadas a desigualdades estruturais” históricas. “A saúde e a riqueza atuais do povo negro remontam à história do racismo neste país. E não podemos falar do bem-estar das vidas negras sem antes desconstruir o impacto que o racismo continua a ter em nossas vidas.”(Bahia Notícias)