Crime aconteceu na madrugada do dia 4 de dezembro, na avenida que leva o nome da ialorixá no bairro de Stella Maris, em Salvador
Completamente carbonizada. Foi assim que ficou a estátua da Mãe Stella de Oxóssi, uma das personalidades mais importantes do Candomblé no Brasil. A obra de cerca de dois metros foi vandalizada, junto com a figura do orixá, por um incêndio criminoso fruto do ódio e da intolerância religiosa.
O crime aconteceu na madrugada do dia 4 de dezembro, na avenida que leva o nome da ialorixá no bairro de Stella Maris, em Salvador. Na Bahia, era comemorado o dia de Iansã – a orixá dos ventos e protetora contra os raios. “É como se a pessoa quisesse usar a data justamente para marcar ainda mais o seu ódio religioso”, observou Leonel Monteiro, presidente da Associação Brasileira de Preservação da Cultura Afro Ameríndia (AFA).
Maria Stella de Azevedo Santos, conhecida como Mãe Stella, foi homenageada com a escultura alguns meses após a sua morte, aos 93 anos, em dezembro de 2018. Iniciada no candomblé aos 14 anos no terreiro Ilê Axé Opô Afonjá, em São Gonçalo do Retiro, se tornou ialorixá 37 anos mais tarde. Reconhecida mundialmente pela promoção das crenças religiosas africanas, é membro da Academia de Letras da Bahia e Doutor Honoris Causa da Ufba, além de detentora de diversas honrarias.
“Ela deu uma projeção muito grande ao culto dos orixás. Pelo lado religioso, deixa um legado preciosíssimo. Representou a inteligência negra da Bahia de uma maneira brilhante. Ao mesmo tempo em que ela era ativista da luta antirracista, era uma escritora de talento notável”, relembrou o antropólogo Ordep Serra.
A obra, do escultor Tatti Moreno, que faleceu em julho deste ano, foi atingida por chamas nas duas estátuas que a formam: a de Mãe Stella e a de Oxóssi, que fica logo atrás, com 6,5 metros. O gigante orixá teve a pintura da estrutura da saia danificada, mas, ao contrário da imagem da líder religiosa, escapou da destruição total.
O terreiro Afonjá repudiou o ocorrido “contra nossa ancestral que, ao longo da sua história, além de sempre defender o direito à liberdade religiosa para todos – inclusive adeptos de outros credos e denominações -, construiu ações e escreveu sobre o legado do candomblé”. A AFA também caracterizou o caso como “lamentável”.
Intolerância recorrente
Extremo, o ataque não é o primeiro no estado onde habitam mais de 47 mil adeptos a cultos de matriz africana (IBGE, 2012) e tem a população negra superior a 80%. A estátua de Mãe Stella de Oxóssi já havia sido vandalizada em setembro de 2019, quando amanheceu pichada. Em abril do mesmo ano, logo após a implantação do monumento, um homem furioso publicou nas redes sociais um vídeo com uma bíblia na mão alegando que Deus estaria “irado” com a homenagem.
Outro exemplo ligado a símbolos da religião é a Pedra de Xangô, em Cajazeiras X, que também já foi alvo de diversas manifestações intolerantes. Em abril deste ano, um pastor evangélico escalou a imponente estrutura, com cerca de oito metros de altura, e proclamou, em voz alta, pregações religiosas. O episódio foi visto como uma provocação. Já em dezembro de 2018 e janeiro de 2019, o lugar sagrado para o povo de santo foi vandalizado com mais de 100 quilos de sal. Em ambas ocasiões, a limpeza foi feita pelos próprios adeptos do candomblé.
Nenhum dos episódios culminou em prisões. “É muito triste perceber que apesar da sociedade civil e órgãos combaterem esse tipo de crime violento, ainda que se identifique as pessoas, elas não são punidas exemplarmente. Então temos a reincidência”, lamentou Monteiro.
A Polícia Civil está investigando o último caso, tipificado como “ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo”. Ainda não foram identificados suspeitos da ação. A reportagem solicitou o dado da quantidade de crimes de intolerância religiosa cometidos este ano na Bahia, mas não obteve um retorno. A pena prevista é de um a três anos de prisão, além de multa. Já a Guarda Civil Municipal, informou que nos primeiros onze meses de 2022 foram registrados 106 casos de vandalismo em Salvador.
Protegida por Oxóssi, Mãe Stela resiste
“Quando vi [a estátua] queimada, foi um impacto. É impressionante. Doeu”, confessou André Moreno, filho de Tatti Moreno. O escultor da estátua de Mãe Stella de Oxóssi morreu em julho deste ano, pouco mais de três anos após a inauguração da obra.
No último dia 5, a Prefeitura de Salvador retirou a estátua do local “para que seja recuperada”, segundo Bruno Reis. Na manhã seguinte, a Fundação Gregório de Mattos (FGM) reuniu-se com André e Gustavo Moreno, que assumem atualmente o ateliê e o legado artístico do pai. Os dois apresentarão uma proposta à FGM ainda este mês.
“A gente vai ter que refazer do zero, esculpir novamente”, afirmou André. O artista disse ao Jornal da Metropole que irá sugerir um material mais duradouro para a nova estátua, como o bronze. “Tem um custo mais alto, mas é uma segurança maior”, explicou. A fundação informou que aguardará a apresentação do projeto para seguir com os trâmites burocráticos, como a definição do orçamento e o prazo para a reconstituição da importante figura da cultura baiana.
Apesar de cristão, Tatti Moreno tinha uma relação muito próxima de Mãe Stella. “Na Bahia todos nós transitamos em muitas crenças, com muita fé”, esclareceu André.
A estátua foi queimada, mas será reconstruída. E a sua memória nunca será apagada. Afinal, Mãe Stella é filha de Oxóssi, o guardião e caçador. “Deixe que o fogo ela nos dê, porque sua intolerância não nos interessa”, sintetizou Carlinhos Brown nas redes sociais. (Metro1)