Trocas de emails obtidas pelo UOL Esporte evidenciam que o Flamengo sabia de riscos em função da precariedade das instalações elétricas do Ninho do Urubu desde 11 de maio de 2018 -nove meses antes do incêndio no alojamento do centro de treinamento que matou dez meninos das categorias de base do clube após um curto-circuito em um dos aparelhos de ar-condicionado do local.
Correspondências internas trocadas entre os então responsáveis pelo dia a dia do CT apontaram aos dirigentes do Flamengo as “não conformidades” das instalações e “suas gravidades”, mostrando que os seguidos autos de infração da Prefeitura não eram os únicos problemas para o funcionamento do lugar como dormitório.
Os problemas na parte elétrica foram verificados semanas antes. A partir disso, foi chamado um técnico de segurança do trabalho do clube para a realização de uma inspeção no local. Tal visita ocorreu no dia 10, com novo relatório técnico feito no dia seguinte e enviado a responsáveis rubro-negros.
“A avaliação foi realizada na presença do Sr Adilson, da empresa CBI, este indicado pelo Sr Luiz Humberto [Gerente de Administração do Flamengo], sendo comprovado as não-conformidades e suas gravidades. Conforme a avaliação do Sr Adilson e relatório anterior, a situação é de alta relevância e grande risco, ficando este de apresentar uma proposta ao Sr Luiz Humberto para atendimentos emergenciais de alguns pontos: quadro elétrico (poste ao lado do refeitório), disjuntores e fiação no jardim, quadro elétrico atrás do alojamento da base”, alertou o relatório enviado pelo funcionário do departamento pessoal Wilson Ferreira ao gerente de administração do Flamengo, Luiz Humberto Costa Tavares, à gerente de recursos humanos Roberta Tannure e a um funcionário identificado como Douglas Silva Lins de Albuquerque em 11 de maio.
Com dez fotos e imagens que detalhavam especialmente as citadas “gambiarras” no quadro elétrico atrás do alojamento da base (contêineres) -local do incêndio trágico-, o relatório chamava a atenção pela observação final.
“As irregularidades abaixo não serão tratadas no momento, pois, conforme informação, o local será demolido e substituído por novas instalações até o final do ano de 2018, deixando claro que caso haja fiscalização e autuação o argumento mesmo que evidente não justifica a irregularidade, ficando a critério do órgão fiscalizador a penalidade ou intervenção”.
O técnico responsável reproduzia o que ouviu dos funcionários do clube que o acompanharam. A ideia inicial do clube, ainda durante a gestão de Eduardo Bandeira de Mello, era ter o novo CT da base ainda em 2018, substituindo as instalações verificadas. Nada feito. As novas e definitivas instalações não ficaram prontas no tempo planejado. E os jovens dormiram nos alojamentos precários citados até 8 de fevereiro, dia do incêndio que tirou a vida de dez deles.
No dia 12, o gerente Luiz Humberto repassou o documento que detalhava o cenário preocupante ao diretor executivo de administração do Ninho do Urubu, Marcelo Helman.
“Boa tarde, Marcelo. O técnico de segurança do trabalho do CRF [Clube de Regatas do Flamengo], em vistoria nas instalações elétricas do CT, verificou vários itens fora da conformidade com as normas de seguranças exigidas.
Falamos com o Marcelo Sá, que estava no CT, a respeito dessas instalações (não sabiam se foram feitas pelo patrimônio ou se já vêm de longa data, no esquema ‘faça-de-qualquer-jeito’ que os antigos administradores atuavam).
Sá achou por bem solicitar que o Adilson (engenheiro eletricista que fez a instalação elétrica do CT -que você conhece) acompanhasse para verificar a real situação e elaborasse, caso seja necessário, um primeiro orçamento para colocarmos as instalações elétricas em dia.
Após o envio desse primeiro orçamento, pediremos outros mais para compor quadro de concorrência. Segue abaixo email enviado pelo técnico a respeito do que encontrou no CT (com fotos). Te manterei atualizado quando o Adilson fizer suas considerações. Grande abraço. Nos falamos melhor na segunda”, finalizou Luiz Humberto, comunicando à alta diretoria do clube sobre o caso.
REPAROS ELÉTRICOS NUNCA FORAM FEITOS
A empresa CBI fez o orçamento dois dias depois. A previsão era de reparos em até 10 dias a um custo de R$ 8.550,00.
Contratada pelo serviço, a empresa emitiu duas notas fiscais (cada uma no valor de R$ 4.275,00, datadas dos dias 25 de maio de 2018 e 1º e outubro de 2018), mas o trabalho jamais foi executado.
Essa afirmação é feita pela Anexa Energia, que foi contratada pelo Flamengo para produzir parecer após a tragédia. Em documento assinado por José Augusto Lopes Bezerra, em março de 2019, a firma garante que o serviço “não foi realizado [pela CBI], mantendo o mesmo alto grau de risco antes verificado [pelo clube]”.
Mesmo após o pagamento de outubro e a verificação de que o serviço não havia sido realizado, o Flamengo não providenciou novos reparos. E assim o cenário das instalações elétricas apontado nos relatórios permaneceu. Até o fatídico 8 de fevereiro de 2019.
Estas peças constam de uma briga judicial entre clube rubro-negro e a Anexa, visto que o clube rompeu o contrato em vigência sob a alegação de não cumprimento do trabalho, informação contestada pela empresa. Quando as partes acertaram a prestação dos serviços, a companhia exigiu acesso a todas as correspondências que detalhassem a rotina do Flamengo em todo este processo das instalações do seu centro de treinamento.
“Foi autorizada pelo Flamengo a análise de toda rotina administrativa do clube, na qual foram encontradas diversos emails, dentre um que mais chamou atenção no qual um técnico de segurança do trabalho do próprio clube alertou sobre as péssimas condições das instalações elétricas e o iminente risco de incêndio, em maio de 2018, para confrontar com a vistoria técnica realizada pela Anexa em fevereiro de 2019, logo após o incêndio, para ao final emitir o parecer técnico sobre a possível causa da tragédia”, disse o advogado e representante legal da Anexa, Carlos Alberto Almeida Moreira da Silva.
GESTÕES BANDEIRA E LANDIM NÃO SE ENTENDEM NO CASO
Responsáveis pelo comando do clube no exercício do ano de 2018, integrantes da alta cúpula de Bandeira de Mello conversaram com a reportagem e disseram que não foram informados sobre o caso à época. Ciente de tudo desde o início, o diretor executivo de administração do CT, Marcelo Helman, no entanto, tinha trânsito livre com vice-presidentes, a quem se reportava, e na presidência rubro-negra.
Em fevereiro deste ano, durante depoimento na CPI que apura o caso na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, Bandeira já havia batido na tecla de que não tinha ciência de tudo que ocorria no Ninho do Urubu. “Eu acho perfeitamente crível que o presidente do clube não soubesse disso”, disse à época, se esquivando ao ser questionado se sabia de autos de infração lavrados no centro de treinamento.
Por outro lado, integrantes da alta cúpula da atual gestão questionam tal postura e citam o email obtido pelo UOL Esporte evidenciando que ao menos um diretor executivo do Flamengo à época sabia das condições precárias e do risco no local.
A reportagem ainda apurou que o comportamento do executivo Marcelo Helman após o acidente fatal em fevereiro de 2019 incomodou a direção que acabara de assumir o clube.
O entendimento da atual gestão é que Marcelo poderia contribuir com a compreensão do cenário no centro de treinamento, o que acabou não acontecendo. O diretor repetia que não tinha informações sobre documentos, relatórios e rotina do Ninho, local onde era chamado até de “prefeito”.
O tal prefeito, no entanto, era visto poucas vezes no CT, ainda que fosse o principal responsável do lugar. Em uma reunião após o incêndio, Helman ainda debochou. “Não sei o que estou fazendo aqui, poderia estar na praia”, disse, no encontro com outros diretores e membros da cúpula realizado em 10 de fevereiro de 2019. Foi o estopim para que o presidente Rodolfo Landim não o quisesse mais no clube.
Contudo, com receio de demitir o executivo em meio a investigações e configurar um apontamento de culpa no caso, Landim foi orientado a mantê-lo no quadro de funcionários. O presidente ordenou que Helman não aparecesse mais nas dependências do clube, mesmo recebendo o salário de cerca de R$ 60 mil até junho daquele ano, quando foi oficialmente desligado em meio a uma leva de demissões no Flamengo.
Procurado pela reportagem, o clube rubro-negro informou que não se manifestaria sobre as informações relativas aos emails de 2018 e seus desdobramentos. Marcelo Helman não foi localizado até o fechamento da reportagem. A empresa CBI também não teve nenhum representante encontrado até a publicação da matéria. (Jornal de Brasilia)