Um levantamento do Instituto Datafolha divulgado no fim do mês passado aponta que um terço das advogadas do Brasil (33%) já sofreu assédio sexual em escritórios de advocacia, fóruns e departamentos jurídicos de empresas.
E o cenário não é diferente na Bahia. A última pesquisa feita pela Comissão da Mulher Advogada da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Bahia (OAB-BA) aponta que 23,68% das advogadas ouvidas já sofreram assédio sexual no trabalho, 43,23% já presenciaram outra mulher sofrendo prática de assédio ou importunação sexual e 39,21% delas já passaram por situação de assédio moral no mesmo contexto.
A doutora em Direito Público e professora de Direito Penal da Universidade Federal da Bahia (Ufba), Daniela Portugal, comenta os dados com o Bahia Notícias. A docente, que também é presidente da Comissão da Mulher Advogada da OAB-BA e uma das autoras do estudo, diz que muitas mulheres que já sofreram assédio sexual não possuem a consciência sobre o que é, quais modalidades podem acontecer no ambiente de trabalho e como o fator gênero afeta a questão.
“Descobri isso em uma pesquisa. Uma das perguntas era se a pessoa já tinha sofrido assédio sexual. E a pergunta seguinte era se a pessoa já tinha sofrido cantadas insistentes, comentários desrespeitosos de conotação sexual, toques não consentidos… e identificamos que muitas mulheres que afirmaram nunca terem sofrido assédio sexual afirmaram já terem sido vítimas dessas situações”, lembra.
Segundo Portugal, o assédio sexual no ambiente de trabalho só se configura crime quando o agressor ocupa uma posição hierárquica superior à vítima ou está em ascendência em relação aos colegas. Já em casos de pessoas em igual posição na hierarquia, a professora explica que a situação pode ser configurada em outros crimes, como por exemplo o de importunação sexual ou constrangimento ilegal.
Mas a professora conta que o significado jurídico de constrangimento em ambos os delitos é diferente do sentido popular. “Significa forçar alguém a algo. Um sujeito que está chantageando, forçando, ferindo a liberdade de alguém”, detalha.
Já nos casos de cantadas insistentes, Portugal explica que a insistência pode configurar crime caso haja ameaça implícita e, por isso, cada caso é avaliado particularmente. “Não podemos dizer que, em abstrato, todo e qualquer caso de insistência é assédio sexual. É avaliado em cada caso os contornos e as peculiaridades dessa insistência para saber se naquela situação houve ameaça imlplícita. Existindo, podemos falar no crime”, diz.
Portugal também acredita que o assédio sexual pode ser praticado junto ao assédio moral. No levantamento da OAB-BA, 39,21% das advogadas afirmaram já terem sofrido assédio moral. O número é quase o dobro do que entre os homens (20,46%). Ela relaciona o número a uma questão de gênero.
“O assédio moral, aquela perseguição no ambiente de trabalho, tem um componente de gênero que é muito determinante e nem sempre é visível. As pessoas só atentam para a questão de gênero no assédio sexual, e desde o assédio moral o componente de gênero já é determinante”, alerta.
Caso a vítima tenha reunido provas, Portugal recomenda procurar o Ministério Público primeiramente. “Quando a gente leva um caso para a delegacia, o objetivo é investigar, mas às vezes a vítima já conseguiu reunir elementos suficientes para que o Ministério Público ofereça denúncia. Então, eu acho que é sempre o mais recomendado já levar as provas ao Ministério Público para que ofereça denúncia ou, caso entenda que não há provas suficientes, solicite abertura de inquérito”, orienta. Fotos, gravações de voz e vídeos podem ser apresentados como provas, mesmo sem o conhecimento do agressor. A docente cita que testemunhas e o próprio depoimento da vítima também podem ser usados.
O estudo também revela que 41,62% dos entrevistados não tomaram providência quanto ao assédio; 47,71% adotaram soluções como transferência de setor ou conversaram com o superior e 7,1% pediram demissão. Somente 0,5% processou o autor do assédio sexual.
Para mudar esse cenário, Portugal avalia que é preciso haver cada vez mais mulheres ocupando cargos necessários na condução desses casos. Ela também destaca práticas que reforçam a perpetuação do assédio, como casos em que após contar sobre o assédio, a vítima é coagida a lidar com o agressor usando a situação como vantagem.
A professora conta que durante as palestras para divulgar o estudo, muitas advogadas relataram ter passado por esse tipo de situação. “Dizendo, inclusive, que quando reportavam casos de assédio sofridos no exercício da profissão, por exemplo, de algum juiz ou promotor assediando ou importunando sexualmente, em vez do escritório de advocacia interromper o contato da advogada no ambiente em que sofreu o assédio, ter passado a utilizar disso pra fazê-la ir mais vezes no local. Por exemplo: ‘já que ele está te assediando, é bom que vá você’”.
Ela aponta ainda a revitimização do Estado durante a denúncia como um dos fatores que desencorajam a busca por meios legais, como quando os representantes do Estado questionam o tipo de roupa usada, ter mantido o vínculo com a empresa ou o motivo de não ter feito o registro antes.
Por isso, a professora também propõe que o cumprimento de normas contra essas práticas seja condição para a progressão de carreira. Além disso, acredita que o problema precisa ser combatido estruturalmente. “A desinformação é um dos fatores muito importantes. E essa educação precisa existir tanto no ambiente de trabalho quanto no ambiente escolar”.
DISCRIMINAÇÃO RACIAL
O estudo também revela que 28,72% dos que se autodeclararam negros ou indígenas afirmam já terem sido vítima de assédio moral em expediente. Além disso, 23,89% das mulheres negras e indígenas entrevistadas declaram já ter passado por assédio ou importunação sexual.
A presidente da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB-BA, Dandara Pinho, relaciona a situação e a maior recorrência de casos em que mulheres são vítimas ao contexto histórico-cultural de escravidão no Brasil. Ela conta que as mulheres trazidas das regiões que hoje são a Angola e Zimbabue, no continente africano, deviam realizar trabalhos domésticos e acompanhar os senhores de engenho. Mas além dessas atividades, eram vítimas de violência sexual.
“Como a chegada dos povos africanos já foi nessa perspectiva, de serem violentados. A mulher negra desde então foi olhada como uma carne humana para servir homens e mulheres. Na atualidade, a gente pode perceber, com os casos que chegam na comissão e não são oficializados, que as advogadas negras sofrem muito mais casos de assédio e discriminação quando estão nos escritórios de advocacia do que mulheres não negras”, analisa. Para Dandara, a origem do assédio moral e sexual está na ideia de que o homem pode utilizar da intelectualidade e do corpo da mulher negra para colocá-la em estado de submissão.
Dos advogados negros de Salvador e Região Metropolitana, 20,89% afirmam já terem sofrido racismo durante o exercício da profissão. Além disso, 30,60% dos participantes negros e não negros do estudo já presenciaram práticas de racismo no ambiente de trabalho e 11,37% responderam já terem sido alvo de críticas e piadas relacionadas à estética negra.
Para Dandara, os casos de discriminação racial, assédio sexual e moral no ambiente de trabalho são “extremamente difíceis” de serem comprovados por acontecerem em ambientes de intimidade. Por isso, diz ser importante registrar esses momentos. “É a palavra da vítima contra a do agressor. Então, é importante ter arquivos como provas, para que a petição inicial ou a queixa crime seja instruída a fim de corroborar com o convencimento do juiz”, orienta.
Dandara aponta ainda a importância de denunciar esses casos. “Caso haja maior número de denúncias nas delegacias e no Ministério Público do Trabalho (MPT), poderá forçar a administração pública, em todos os seus níveis, a intensificar as investigações desses casos no ambiente de trabalho”, estima. (Bahia Notícias)