“Com a caneta eu tenho muito mais poder do que você. Apesar de você, na verdade, fazer as leis, eu tenho o poder de fazer decreto. Logicamente, decretos com fundamento”, afirmou o Presidente da República, Jair Bolsonaro, ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, em 28 de maio, em Brasília.
Em pouco menos de cinco meses de governo, Bolsonaro já editou 145 decretos presidenciais, índice superior às marcas dos governos Dilma Rousseff, Lula e Fernando Henrique Cardoso nesse mesmo período durante seus primeiros mandatos.
A publicação de decretos pelos chefes do Poder Executivo está prevista na Constituição Federal. Entretanto, quando usada com fundamento, essa figura normativa tem por objetivo regulamentar dispositivos legais, de forma a torná-los mais concretos e, assim, permitir seu devido cumprimento. Ou seja, na hierarquia dos atos normativos, o decreto não pode se sobrepor à lei criada pelo Legislativo justamente porque existe para regulamentá-la.
Já a aplicação que vem sendo feita pelo presidente brasileiro não apenas se distancia de tal premissa, como revela pouco apreço pelas regras do jogo democrático e um modus operandi que tende a uma postura autocrática, desvalorizando o papel dos demais poderes da República dentro do regime democrático.
A figura do decreto traz consigo uma herança amarga à sociedade brasileira. Durante a ditadura militar, os chamados decretos-lei foram os instrumentos utilizados para que a vontade soberana do presidente se impusesse. Não surpreende que quem celebra o Golpe de 64 aspire a governar desrespeitando o rito democrático e burlando os processos legislativos.
Ainda assim, mais preocupante que o ranço da memória ditatorial é a quantidade de vezes que o atual Presidente da República foi questionado no STF por desrespeito à Lei Maior. Até o presente momento, 41 Ações Diretas de Inconstitucionalidade têm Jair Bolsonaro como parte, e um dos argumentos mais presentes nas ações é que o presidente extrapola as competências do Poder Executivo e se apropria, portanto, das prerrogativas do Legislativo.
É o caso do decreto que extingue os conselhos de políticas públicas, daquele que prevê a liberação do porte de armas, assim como o texto que trata da nomeação dos reitores das instituições federais de educação. Independente das avaliações quanto ao conteúdo dos decretos, a preocupação reside principalmente sobre a forma. Debates como esses devem – por princípio e por norma – ser travados entre os representantes eleitos pela sociedade dentro do parlamento, e não apenas a partir da aspiração de um único indivíduo.
Precisamos estar atentos. Os mais recentes debates acerca da corrosão das democracias no mundo retratam que esse processo não é tão abrupto quanto nos acostumamos a pensar. As rupturas não acontecem de uma hora para outra. Pelo contrário, os fenômenos atuais dão conta de uma lenta e gradual erosão dos fundamentos da vida política e democrática. Desgaste que se dá tanto no campo dos valores – no crescimento da intolerância ao diferente e da prática de mentiras e linchamentos virtuais contra opositores -, quanto no ataque às instituições – no desrespeito às regras do jogo democrático e na afronta à separação dos poderes.
Legislar por meio de decretos, menosprezando e subjugando o papel do Poder Legislativo em um regime democrático, é uma forma de minar a democracia por dentro. O exercício de um governo democrático pressupõe respeito absoluto aos poderes e às instituições da República. É, portanto, dever da máxima autoridade do Estado brasileiro prezar pelo papel que desempenham e cultivar no seio da sociedade a estima pela harmonia, independência e pelo bom funcionamento das instituições democráticas.
A nota é assinado por 36 entidades, entre elas a Ação Educativa, Atletas pelo Brasil, Frente Favela Brasil, Instituto de Estudos Socioeconômicos – INESC, Instituto Sou da Paz e Rede Justiça Criminal. (notícias ao Minuto)