Excluídos de estatísticas, 33 mil indígenas da Bahia podem ficar sem vacina contra a covid

Terra indigena Vale do Javari, no oeste da Amazônia, na fronteira com o Peru; grupos isolados também têm dificuldade de receber a vacina (Bruno Kelly/Amazônia Real)

Cacique Antônio de Souza é indígena e, aos 74 anos, o mais velho da Aldeia Kiriri do Cru. É ancião, guarda lembranças de outros tempos. Oficialmente, no entanto, é como se ele e a aldeia não existissem. Nem a assistência de saúde sobe aquela comunidade que, longe das estatísticas, também não deve ser imunizada contra o coronavírus.

Mais de 33 mil indígenas baianos podem estar na mesma situação, privados de direitos, estima a Associação Nacional de Ação Indigenista (Anai). Os milhares de indígenas fora do plano de imunização vivem em áreas não demarcadas ou em contexto urbano. São considerados “aldeados” indígenas que vivem em aldeias, demarcadas ou não, mas não apenas os que vivem em aldeias são indígenas, dizem antropólogos.

Distantes das expectativas de vacinação, povos originários temem pela saúde deles próprios e pela perda das memórias coletivas, devido ao risco da doença aos mais idosos, considerados bibliotecas vivas em culturas orais.

Um estudo publicado na revista científica The Lancet, em setembro de 2020, mostrou que indígenas são quatro vezes mais vulneráveis à Covid-19 que o restante da população, e listou três motivos  para isso: alta densidade de pessoas vivendo num mesmo ambiente, pobreza e dificuldades de acesso à saúde.

Essas vulnerabilidades e característica social de agrupamento, explicou Sara Mota, doutora em Saúde Pública pela Universidade Federal da Bahia e especialista em Saúde Indígena pela Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp), refletem-se em indígenas em estados de subnutrição e desnutrição, por exemplo, que enfraquecem as defesas do corpo e geram problemas de saúde paralelos.

A imunização desses indígenas à parte das estatísticas oficiais de atendimento, defendeu ela, “significa a sobrevivência. Para além da questão da saúde, é uma questão cultural e de preservação”. A primeira indígena baiana vacinada foi Vanuza Kaimbé, no dia 17 de janeiro, o primeiro da campanha de imunização. Ela representou, duplamente, indígenas e profissionais de saúde.

Indígenas viajam até 40 quilômetros por atendimento

Em dezembro de 2018, os Kiriris receberam a notícia de que não seriam mais atendidos pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), subordinada diretamente ao Ministério da Saúde e criada em 1999 para cuidar dos indígenas. Da Kiriri do Cru, cravados numa terra seca, então assistida pelo programa desde 2012, não cuidariam mais.

Se algum deles precisa de atendimento de saúde, vão até Euclides da Cunha, a 40 quilômetros de distância, em carros fretados. Foram excluídos do atendimento de saúde da secretaria especial pela falta de demarcação das suas terras, segundo o cacique Antônio.

Dispersas pela Bahia, há 18 terras indígenas demarcadas, três em estudo e 29 que reivindicam o direito da demarcação, respondeu a Fundação Nacional do Índio (Funai). Nenhuma delas  está isolada, como acontece a algumas etnias no Norte do país. Entre o os estados do Amazonas e Roraima, por exemplo, há oito registros de povos isolados.

Na Constituição Federal de 1988, previa-se um prazo não cumprido de cinco anos para todas as terras serem demarcadas. A Funai não respondeu quanto tempo o processo de demarcação demora A Aldeia Kiriri do Cru aguarda há dez anos a demarcação dos limites da terra, reconhecidos por Cacique Antônio de cabeça, sem necessidade de régua. Seus bisavôs, avôs, pais e, agora, ele, sempre souberam o que os pertence. É só fechar os olhos e o ancião enxerga o território diante de si.

A espera, durante a pandemia, é ainda mais dolorosa. Pois, para o povo da Aldeia Kiriri do Cru, o fim dela significa que a saúde estará mais perto.

A Sesai atende 33.599 indígenas na Bahia, distribuídos por 113 aldeias, de 28 etnias, demarcadas ou em fase de demarcação. A Anai projeta número semelhante de indígenas fora desse radar.   O Plano Nacional de Vacinação só inclui indígenas que são atendidos pela Sesai, maiores de 18 anos.  

Questionado, o órgão respondeu que é responsável pelos indígenas que vivem em aldeias – não especificou se somente as demarcadas – e que todos serão vacinados, conforme as fases de imunização, como o restante dos brasileiros. Sobre a situação da Aldeia Kiriri do Cru, não comentou.

Desde março do ano passado, quando teve início da pandemia, 1.859 indígenas foram infectados pelo vírus, na Bahia. A Sesai fala em sete mortos entre  aldeados – cindo dos mortos eram idosos, com mais de 65 anos. A Anai fala em mais de uma dezena.

O Brasil teve 548 mortos e 41.790 casos em aldeias, ainda de acordo com o órgão federal, no mesmo período. Lideranças indígenas acreditam em subnotificação. Se a assistência de saúde muitas vezes não chega a todos os povos, é plausível, para eles, dizer que também falta testes para casos suspeitos e por aí vai.  

Passado e presente de restrições 

O cacique Antônio é o mais antigo do seu povo, mesmo que a idade, já avançada, pareça pouca diante do imaginário em torno de anciões ainda mais idosos. É das lembranças desse senhor que brotam as histórias quase esquecidas dos Kiriri do Norte, destroçados por perseguições e agressões que os distanciaram. Muitos partiram da aldeia, em busca “de uma vida melhor”.

“Lembro que teve tempo que aqui trocavam pedaços de terra por fato, por boi, de tanta fome. De um tempo em que branco cisma e batia a gente de vara. Um sofrimento triste”, relembrou, ao vasculhar as lembranças da infância.

A liderança não está enquadrada nesta fase da vacinação – é 16 anos mais jovem que os 90 anos exigidos na Bahia para imunização de idosos e não é considerado pelas estatísticas como um indígena que deve ser imunizado.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas, a população indígena brasileira era 896,9 mil, em 2010, ano do último censo. Na Bahia, 56.381 pessoas se autodeclararam indígenas há uma década, o que faz do estado o terceiro mais indigena do país, em números brutos.

“Eles já sofrem toda uma violência. A questão da vacina é mais um peso. Eles não deveriam deixar de ser visto como indigenas por estarem em aldeias não demarcadas ou cidades”, avaliou Haroldo Heleno, Coordenador do Conselho Indígena Missionário (Cimi).

Salvador tem a terceira maior população autodeclarada indígena do país, com 7.560 indígenas, segundo o último censo do IBGE, de 2010. O representante disse que a não inclusão dos povos indígenas na vacinação, de forma igualitária, é um “perigo” à manutenção dessas populações.

E ainda mais grave é o fato de muitos desses indígenas integrarem povos esfacelados, em fase de reencontro enquanto povo, sem força política, comentou Heleno. O resultado é que muitos problemas sequer são publicizados. Acontecem como se não tivessem acontecido. É o caso da Aldeia Katrimbós, fixados numa localidade próxima a Monte Santo, no Norte da Bahia.

Há dez anos, aqueles indígenas começaram a luta para serem percebidos, formalmente, enquanto um povo, embora vivessem agrupados, como num povoado, desde sempre. Os Katrimbós nunca receberam assistência de saúde enquanto um povo indígena. São 70 famílias no território, onde moram 60 idosos, os chamados “anciões”

O antigo cacique, o primeiro deles, tem hoje 90 anos e espera a vacinação pela idade, não pela identidade. 

“Se a gente não vai receber a vacina, é porque muitas outras coisas, muitos outros apoios não vão chegar até aqui. Não vai ter posto, não vai ter escola indígena”, temeu o atual Cacique Mário Katrimbó, que foi vacinado por trabalhar em um posto de saúde em Monte Santo.

Como não recebem visitas de agentes especializados, há o medo de que casos de Covid-19 aconteçam sem registro, nem conhecimento da comunidade, que pode se contaminar por desconhecimento. O processo de demarcação da terra teve início em 2013, quando Cacique Mário conheceu uma antropóloga que já tinha estudos sobre indígenas da região. Mas não houve andamento no pedido.

“O direito é originário”, diz antropólogo

Falar em “aldeia” é remeter a um conceito colonial, em que os indígenas eram reunidos para fins de catequização. Vem do árabe “ad-Dai’hâ”, que significa pequenas aglomerações. Ao longo da história, convencionou-se usar, portanto, aldeia para fazer menção aos diferentes agrupamentos desses indígenas.

Os territórios indígenas são a porção de terra que contemplaria lagos, rios, florestas, envolvidos por laços sociais, culturais e religiosos aos indígenas. E esse entendimento independe de processos burocráticos, disse o doutor em Antropologia, José Augusto Laranjeiras. 

“Não precisa haver demarcação para que eles sejam indígenas. A demarcação não cria o direito, que é originário, é um processo administrativo”, explicou ele, que também é professor da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e diretor da Anai.

Só a partir da década de 30, grupos até então isolados, como os Hã Hã Hae, começam a se organizar. Mas o processo só ganha mais força, e, ainda assim, timidamente, em 1945. Na década de 60, com a abertura de fazendas de cacau no Sul da Bahia, mais índios se dispersaram pelo estado.

Tiveram, à época, a terra tomada, muitas vezes, a tiros de espingarda, falou Laranjeiras, e só restou fugir – da terra e da própria história.  A população indígena, a essa altura, já estava apartada, contou o antropólogo. Depois de episódios de violência e expulsão das suas terras, não eram – e não são – poucos os indígenas que ou não se reconhecem como tais ou perderam os vínculos familiares ancestrais.

“É um processo recente de garimpar os parentes, onde foram parar. O processo de desarticulação é muito mais antigo e continua acontecendo, muitos indígenas, jovens, saem para estudar, por exemplo, trabalhar”, opinou Laranjeiras.

As dificuldades, somadas, atrapalham o processo de reconhecimento dos indígenas e do olhar institucional branco sobre eles. Como se pairasse no ar uma ideia ainda romantizada do que significa ser indígena que nega a complexidade dessa identidade, e houvesse “índio verdadeiro”, aquele que viveria numa aldeia demarcada, isolados, falando línguas originárias e cultuando os seres da floresta, e “índios falsos”, habitantes de cidades, relataram especialistas ouvidos para esta reportagem.

Em janeiro, a Funai decidiu que, a partir deste ano, exigirá cumprimento de critérios para definição de quem é índio no país, como a comprovação de vínculo de ocupação ou habitação entre a etnia e algum ponto do território brasileiro. Até então, o órgão reconhecia que “identidade e pertencimento étnico não são conceitos estáticos, mas processos dinâmicos de construção individual e social. O Ministério Público Federal (MPF) e organizações que representam indígenas discordam da decisão.

“Não se deve exigir nenhum exame de permanência de tradições, mesmo porque as tradições mudam historicamente, ainda mais em situação de subalternidade. Isso fala de um enfraquecimento político, não identitário”, argumentou Laranjeiras.

Todos os anos, o cacique Miguel Tumbalalá, coordenador do Movimento Unidos dos Povos e Organizações Indígenas da Bahia (Mupoiba), conta que empreende uma verdadeira luta para conseguir, por exemplo, vacinação para os indígenas que não recebem atendimento de agentes especializados, quando há campanhas de vacinação iniciadas por grupos prioritários.

“É uma tecla que todo ano eu bato, e eu não queria que fosse assim, porque todos os indígenas precisam ser reconhecidos. Ninguém deixa de ser indígena”, torceu.

Durante a pandemia, no entanto, não teve jeito. E, mais uma vez, cacique Miguel voltou a repetir o que não queria. (Correios)

google news