André Porciuncula, o então chefe da Lei Rouanet, incentivou o uso do mecanismo destinado ao fomento cultural para eventos e produtos audiovisuais pró-armas, em uma reunião realizada no final do mês passado, quando ainda estava no governo.
Na mesma ocasião, uma reunião com representantes da organização Proarmas, Mario Frias, então secretário especial da Cultura, defendeu o direito do cidadão de se armar. Frias e Porciúncula se desligariam do governo poucos dias depois para concorrerem nas eleições de outubro.
As falas foram resgatadas pela agência Pública nesta segunda (18), e podem ser vistas em uma live do evento disponível no YouTube. Procurada pela Folha no fim da manhã desta terça (19), a Secretaria Especial de Cultura ainda não se manifestou.
Na ocasião, Porciuncula, ex-policial militar que chefiou a Rouanet pelos últimos dois anos, anunciou que a secretaria estava lançando dois grandes eventos em que a “princesa é a arma de fogo”. Tais eventos teriam a presença do presidente Jair Bolsonaro.
“Pela primeira vez vamos colocar dinheiro da Rouanet em um evento de arma de fogo, vai ser superbacana isso”, afirmou.
Neste momento de sua fala, Porciuncula sugeriu que a população se arme contra o Estado, que chamou de criminoso, dando como exemplo do que seriam um crime as restrições adotadas por governadores durante a pandemia.
Porciúncula cita dois eventos alusivos ao bicentenário da independência do Brasil, a ser comemorado no próximo Sete de Setembro e uma das principais bandeiras da Secretaria Especial da Cultura e também da Fundação Biblioteca Nacional. Um será na Bahia e o outro, em São Paulo.
Segundo Porciuncula, a ideia é evidenciar a importância das armas no processo da Independência. “Então, trazer um evento em que a arma de fogo seja a nossa miss na passarela, que a gente mostre para a população um outro olhar sobre a arma de fogo.”
Não fica claro, contudo, se estes são os eventos que fariam uso da Rouanet e que teriam a presença de Bolsonaro, conforme ele menciona anteriormente em sua fala.
O então chefe da Rouanet também anunciou que uma verba de R$ 1,2 bilhão disponibilizada pela secretaria poderia ser usada para produtos audiovisuais como documentários, filmes, webséries e podcasts que versem sobre a importância do armamento para a civilização e “para garantir a liberdade humana”.
A reportagem não conseguiu confirmar este valor. Para efeito de comparação, a Rouanet captou ao todo, no ano passado, R$ 1,9 bilhão.
Por fim, Porciuncula se pôs e pôs também a Secretaria Especial da Cultura à disposição para esclarecer dúvidas sobre como usar o mecanismo de incentivo fiscal para este fim. Disse ainda que, uma vez que saísse do governo, teria uma equipe treinada na pasta para responder aos questionamentos.
No mesmo evento, Frias defendeu a cultura como parte do imaginário da população e a importância da criação de obras audiovisuais. “O ser humano não pensa em palavras, a semântica é basicamente imagens. Se a gente acredita em armas, a gente precisa criar os heróis”, disse.
Ele acrescentou que as narrativas, principalmente para a população mais jovem, não são feitas com estatísticas ou números, mas sim com a cultura, depois de fazer uma ligação entre o filme “Tropa de Elite” e a eleição de Bolsonaro, dizendo que a população brasileira elegeu um capitão.
Frias afirmou ainda que “a Rouanet era um caso de polícia” e que por este motivo foi conveniente ter um ex-PM ao seu lado, durante seu mandato no governo. Porciuncula é ex-capitão da Polícia Militar da Bahia.
O então secretário contou que perdeu um pai assassinado, no final dos anos 1980, e disse que quem defende bandido não sentiu a dor de perder alguém “para a bandidagem”.
Poucas semanas antes do evento da Proarmas, Frias visitou clubes de tiro no interior de São Paulo com dinheiro público, mas omitiu as visitas de sua agenda oficial.
Tanto ele quanto Porciuncula defendem a pauta armamentista em suas redes sociais. Frias inclusive usa o logo da Proarmas numa imagem de divulgação de sua candidatura a deputado federal por São Paulo.
Em tom de piada, Porciuncula também afirmou que toda matéria da Folha usa uma foto dele, de Frias e de Eduardo Bolsonaro armados, que foi postada no Twitter por eles. Segundo o ex-PM, a ideia é vincular a imagem, que ilustra esta reportagem, à criminalidade. (BN)