O Ministério Público Federal está em busca de uma vacina para proteger os acordos de delação premiada negociados por seus integrantes contra um novo tipo de questionamento, provocado pela decisão de várias empresas de pagar indenizações milionárias a executivos que se tornaram colaboradores. Uma comissão responsável pelo monitoramento dos acordos foi encarregada de estudar o assunto e propor orientação aos procuradores. O objetivo é evitar que a prática adotada até aqui alimente dúvidas sobre a legalidade das delações e coloque em risco as investigações em curso e seus desdobramentos na Justiça.
Empreiteiras atingidas pela Operação Lava Jato gastaram centenas de milhões de reais nos últimos anos para pagar multas, despesas com advogados e indenizações a ex-funcionários que confessaram crimes e colaboram com investigações sobre corrupção. Essa prática nunca foi segredo para os procuradores do outro lado da mesa e sempre foi considerada essencial para assegurar a cooperação dos executivos, mas começou a criar desconforto por causa de questionamentos de advogados, delatores e acionistas.
“Não há como o Ministério Público se imiscuir nas tratativas das empresas com seus funcionários, mas é preciso evitar que gerem insegurança sobre a legalidade das colaborações”, diz a procuradora Samantha Dobrowolski, coordenadora do grupo encarregado de examinar o assunto. Nos últimos meses, seis ex-funcionários da Odebrecht que colaboram com a Lava Jato foram questionados sobre os pagamentos da empresa ao depor como testemunhas nos processos em andamento em Curitiba. Eles admitiram que continuaram recebendo da empresa após se tornarem delatores e serem demitidos.
Os questionamentos foram feitos por advogados do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e de outros réus e causaram incômodo. Procuradores manifestaram contrariedade com as perguntas, e os delatores evitaram dar explicações detalhadas sobre os pagamentos que recebem. Numa audiência em junho, uma pergunta sobre o tema foi vetada pelo então juiz federal Sergio Moro, que conduziu os processos da Lava Jato em Curitiba até deixar a magistratura para participar do governo Jair Bolsonaro (PSL). “Não vejo pertinência a uma coisa que é feita pela empresa e uma coisa que é feita no acordo [de colaboração]”, disse.
Além de assumir despesas com multas e advogados, a Odebrecht se comprometeu a compensar os ex-funcionários pela perda de bens confiscados pelas autoridades e por danos causados à sua reputação pessoal, já que a exposição dos crimes praticados dificulta para a maioria a volta ao mercado de trabalho. Os pagamentos são mensais e os valores são próximos dos salários que eles recebiam quando trabalhavam para a Odebrecht, segundo delatores e advogados consultados pela reportagem. Todos têm a garantia de que receberão o dinheiro até o cumprimento das penas previstas pelos acordos fechados com o Ministério Público.
Até o fim do ano passado, a Justiça arrecadou R$ 533 milhões com multas devidas pelos 77 executivos da Odebrecht que se tornaram colaboradores em 2016, segundo balanço divulgado pelo Supremo Tribunal Federal. Procurada pela reportagem, a empresa não quis se manifestar. Para o advogado Cristiano Zanin Martins, que defende Lula, o vínculo mantido pela empresa com os delatores mina sua credibilidade. “Eles são pagos para sustentar versões, e os pagamentos põem em xeque a voluntariedade exigida pela lei no processo de colaboração”, diz.
Mas procuradores e advogados que participaram da negociação desses acordos afirmam que mecanismos previstos pela legislação minimizam os riscos. Delatores devem apresentar provas, ou apontar aos investigadores o caminho para encontrá-las, e estão sujeitos a punição se mentirem ou esconderem informações. “A possibilidade de um colaborador mentir ou omitir fatos de que tenha conhecimento existe mesmo sem as indenizações das empresas, e os mecanismos previstos pela legislação tornam esse tipo de comportamento muito arriscado”, afirma Dobrowolski.
Cinco ex-funcionários da empreiteira OAS que fecharam acordos de delação premiada com o Ministério Público no ano passado receberam indenizações dos controladores da empresa quando as negociações com os procuradores estavam no início, em 2016. Cada um recebeu cerca de R$ 6 milhões, pagos como se fossem uma doação do ex-presidente da OAS Léo Pinheiro e do seu principal acionista, César Mata Pires. Outros três executivos da empresa que se tornaram delatores não tiveram indenização, e um deles reclamou à Justiça do Trabalho, mas o pedido foi recusado.
Ao recorrer ao Superior Tribunal de Justiça contra a condenação de Lula no caso do tríplex de Guarujá, a defesa do ex-presidente usou o exemplo para tentar desqualificar o testemunho de Léo Pinheiro, que foi crucial para incriminar o petista. Mas os ministros do STJ concluíram que as indenizações pagas aos delatores da OAS nada tinham a ver com o caso de Lula e descartaram o exame do assunto. Em abril deste ano, acionistas do grupo CCR aprovaram um pacote de indenizações para 15 ex-funcionários que aceitaram colaborar com a Lava Jato. O programa da empresa prevê pagamentos mensais aos executivos por cinco anos e gastos de R$ 71 milhões, sem contar as despesas com multas e advogados.
Acionistas minoritários criticaram o pacote, mas os controladores da CCR –Andrade Gutierrez e Camargo Corrêa e o grupo Soares Penido– prevaleceram com o argumento de que o acordo com a Lava Jato era essencial para a sobrevivência da empresa e teria sido inviável sem a cooperação dos executivos. Para o diretor-executivo da Transparência Internacional no Brasil, Bruno Brandão, os acertos com ex-funcionários reduzem a confiança nos programas das empresas para aperfeiçoar controles internos. “Se a empresa indica que pode se responsabilizar por tudo, é como um incentivo para o comportamento criminoso.” (Varela)