Nº de casos de intolerância religiosa cai em 2020 na BA, mas promotora relata subnotificação: ‘Não podemos festejar’

Promotora Lívia Vaz relata que subnotificação contribuiu para queda nos casos — Foto: Reprodução/TV Bahia

O número de casos de intolerância religiosa registrados na Bahia, em 2020, teve grande diminuição, segundo dados da Secretaria de promoção da Igualdade Racial (Sepromi). A promotora de Justiça Lívia Vaz alerta, contudo, que os dados estariam subnotificados, por causa da pandemia.

Segundo dados da Sepromi, foram registrados 29 casos de intolerância religiosa no estado em 2020, enquanto em 2018 foram 47 e em 2019 foram 49.

Nesta quinta-feira (21), quando se comemora o Dia de Combate à Intolerância Religiosa, Lívia Vaz, que atua na Promotoria de Justiça de Combate ao Racismo e coordena o Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação do MP-BA (GEDHDIS), afirma que o isolamento social e restrições de cerimônias religiosas têm colaborado para a diminuição dos casos.

“Temos uma leitura de que se deve ao isolamento social, a uma dificuldade das pessoas em se locomover, de acessar os poderes públicos. Então, certamente há uma subnotificação”, explica.

A promotora explicou ainda que a forma como as denúncias chegam à Sepromi também contribui para uma subnotificação de casos de intolerância religiosa registrados pelo órgão. Isso porque a secretaria só contabiliza os casos que chegam diretamente através dos canais de denúncia deles, enquanto o MP-BA recebe dados da própria Sepromi, das delegacias e dos que chegam diretamente ao MP.

Como ainda não existe um sistema que integre esses números, há uma discrepância entre os casos da Sepromi e os do MP. Por exemplo, o MP-BA registrou só em Salvador, em 2020, 44 casos de intolerância religiosa, número maior que o registrado pela Sepromi em todo o estado, no mesmo período.

Os casos registrados pelo MP-BA em Salvador também apontam para uma grande queda de denúncias: foram 76 em 2018 e 137 em 2019.

“Temos que lembrar também que, durante o ano passado, houve restrições a realizações de rituais religiosos. Há uma queda, mas não podemos festeja essa queda”. Ela diz que, com a restrição de cerimônias, as reações de ódio contra esses rituais também diminuem. Porém, destaca que a realidade tem mostrado que os casos, na verdade, têm se intensificado.

“O contexto político contribui para o aumento, porque temos testemunhado agentes públicos se manifestando de maneira a priorizar, privilegiar, determinadas religiões, em detrimento de outras, e isso causa uma sensação de legitimidade da prática de manifestações de ódio. As pessoas têm se sentido à vontade para manifestar ódio religioso, e esse ódio tem como foco as religiões de matrizes africanas. Por isso, a gente fala do fenômeno do racismo religioso. Tem a ver com origem africana dessas religiosidades”.

Intolerância em Feira de Santana

Diego Nascimento, responsável pelo terreiro em Feira de Santana — Foto: Arquivo pessoal
Diego Nascimento, responsável pelo terreiro em Feira de Santana — Foto: Arquivo pessoal

Uma dessa vítimas de intolerância religiosa é Diego Souza do Nascimento, responsável pelo terreiro de Umbanda Estrela Guia de Aruanda, localizado na cidade de Feira de Santana, a cerca de 100 quilômetros de Salvador.

O terreiro fica localizado na Rua 12 de Junho, no bairro das Baraúnas. Após diversos casos de intolerância, ataques à sede e às pessoas no local, o babalorixá resolveu iniciar uma vaquinha para mudar a casa de endereço.

“Há mais de dois anos, quando lá chegamos, o terreiro começou a ser alvo de ataques. Primeiro começou de forma verbal: ‘Olha o macumbeiro’, ‘filho do demônio’, ‘vamos tocar fogo na casa'”, contou.

Todavia, o medo aumentou quando quando as ameaças passaram a ser de violência física.

“Quando nossa casa foi apedrejada, uma das pedras era tão grande que perfurou o telhado e caiu no centro do salão. Ligamos para a PM. Eles foram ao local e falaram: ‘A pedra veio da casa da frente ou da casa do fundo? Você vê quem é e registra queixa’”, contou Diego.

Cerimônia realizada no Terreiro de Umbanda Estrela Guia De Aruanda — Foto: Arquivo pessoal
Cerimônia realizada no Terreiro de Umbanda Estrela Guia De Aruanda — Foto: Arquivo pessoal

Ele conta ainda que, em outubro de 2020, um homem armado interrompeu uma festa no terreiro e que, após isso, foi na delegacia registrar queixa, mas só conseguiu abrir boletim de ocorrência por ameaça.

“Durante uma festa, um vizinho apontou uma arma para a gente. A mãe dele chegou em casa, não estava a fim de ouvir o som de atabaques e começou a xingar. A gente pediu respeito, e ela falou com o filho que a gente estava a desrespeitando. Ele veio armado, nos ameaçou e acabou a festa”, relata.

“Fomos na delegacia, mas pediram vídeos que mostrassem o ato, dizem que sem isso não conseguiriam registrar a intolerância. Não conseguimos fazer o b.o. por intolerância, porque não tínhamos os vídeos para comprovar que estávamos passando por essa situação”, acrescenta.

Em nota a Polícia Civil informou que o registro da ocorrência foi feito e uma audiência foi marcada para colher o depoimento do comunicante. Disse ainda que Diego foi orientado a comparecer nesta quinta à delegacia, para ser ouvido fornecer elementos que pudessem embasar a apuração da queixa.

Ainda segundo a Polícia Civil, a apresentação de testemunhas, vídeos e outras provas “não é uma condição para o registro do fato, tanto que foi feito o BO e a audiência marcada”. Afirmou ainda que se o denunciante considerar que o atendimento recebido na unidade não foi o esperado, a orientação é registrar a insatisfação por meio da Ouvidoria da Polícia Civil, através do telefone (71) 3116-6408, mensagens para o (71) 9 9631-5259 ou e-mail para [email protected]. “Além da Ouvidoria, o cidadão também pode dirigir-se à Corregedoria (Correpol)”, finaliza a nota da Polícia Civil.

Diego também destacou que alguns filhos de santo são proibidos de entrar em mercadinhos da região. “Porque o nosso dinheiro é amaldiçoado, segundo eles. Não podemos andar na rua com fio de contas, vestidos de branco, com medo de ser atacados”. Após todos os casos, eles resolveram mudar de endereço.

“O terreiro está fechado, porque eu estou com medo de ir lá, e vamos mudar de bairro. Lá não dá mais para ficar. De imediato, iríamos fechar o terreiro, mas alguns amigos pediram que a gente continuasse com nossa religiosidade, em outra casa, mesmo pagando aluguel. E é o que vamos fazer. Contamos com a ajuda da comunidade para conseguirmos manter as nossas atividades”. (

Terreiro de Umbanda Estrela Guia De Aruanda, em Feira de Santana — Foto: Arquivo pessoal
Terreiro de Umbanda Estrela Guia De Aruanda, em Feira de Santana — Foto: Arquivo pessoal

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