A menos de 60 dias do início das Olimpíadas de Paris, o corpo das mulheres volta a ser centro de debate.
Imagens dos uniformes femininos de atletismo, feitos pela Nike, foram divulgados no início de abril e o traje foi criticado por atletas mulheres que o consideraram desnecessariamente cavados. As mesmas mulheres classificaram os trajes como “sexistas”, uma vez que o “maiô cavado prioriza o aspecto de aparência em vez de funcionalidade”.
Katia Rubio, coordenadora do Grupo de Estudos Olímpicos da Escola de Educação Fisica da USP (Universidade de São Paulo), entende que, idealmente, a escolha do uniforme deve levar em consideração o bem-estar das atletas e a sua performance.
Segundo ela, o esporte é, historicamente, um campo determinado pelos homens e que “quando atletas não são consultadas sobre o bem-estar, só sobra performance”. “Talvez, o bem-estar seja substituído pela comercialização das imagens”, diz.
Rubio explica que, no caso das Olimpíadas, o uniforme é decidido pelo comitê olímpico de cada país. “É feito um estudo da modalidade e a roupa é desenvolvida em função das características e das demandas da modalidade. Mas nós sabemos que isso não é tão simples assim, porque há interesses comerciais que rondam a imagem das atletas que usam [o uniforme]”, afirma.
“Hoje, nós sabemos o quanto essa questão envolve uma invasão da privacidade da mulher e a sexualização de seu corpo, que pouco implica na performance, mas no uso dessa imagem para ser seguida”, relata.
Em uma postagem em sua conta no Instagram, Lauren Fleshman, campeã de atletismo dos Estados Unidos na categoria 5.000 metros, em 2006 e 2010, insinua que, se os uniformes da Nike fossem verdadeiramente benéficos para a performance física, os homens também usariam eles.
“Desculpe, mas mostre um time da liga feminina de basquete ou de futebol que entusiasticamente defenderia esse conjunto. Ele é para o time de atletismo das Olimpíadas da Track & Field. Atletas profissionais devem poder competir sem dedicar muita energia para uma vigilância constante da região pubiana [se aparece ou não] ou ter a carga mental de ter toda a parte mais vulnerável do seu corpo à mostra […] Se este traje fosse realmente benéfico para o desempenho físico, os homens o usariam. Este não é um uniforme de elite para o atletismo. É um traje criado pelo patriarcado, onde não há espaço para esportes femininos. Sou queer e sou atraída por corpos femininos, mas não espero nem gosto de ver atletas femininas ou atletas masculinos colocados em uma posição de serem autoconscientes em seu local de trabalho”, disse a atleta em sua conta pessoal.
A especialista da USP volta para a questão de como esses recortes na roupa podem ser incômodos e até atrapalhar no desempenho das atletas femininas. “Imagina uma mulher tendo que puxar o decote do bumbum durante a partida, o quanto isso impacta na atenção e na concentração que ela tem para o jogo. Ou, no caso do atletismo, ela tem que ficar prestando atenção nesse uniforme que não foi feito para uma boa performance com conforto; o quanto isso retira a energia dela da própria competição”, relata.
Cláudia Vicentini, professora doutora de Têxtil e Moda na Each (Escola de Artes, Ciências e Humanidades), campus USP Leste, afirma que, em sua história, a moda não é confortável nem prima pelo conforto. “A moda trabalha com aspectos simbólicos do produto e, esses aspectos simbólicos, 90% das vezes, não estão atrelados ao conforto como é necessário, por exemplo, na prática de atividade física”, explica.
A especialista também destaca que a moda reforça os padrões comportamentais. “Por exemplo, estamos falando de um momento histórico onde os papéis sociais de homem e mulher são muito bem definidos. No entanto, a moda reforça estereótipos de comportamento. Por isso falamos que a moda é sexista.”
Rubio explica que, entre as décadas de 1940 e 1950, os uniformes não tinham a mesma relevância de hoje. “O que se buscava era a liberdade do movimento. Os novos materiais levam à busca da excelência porque qualquer milímetro, qualquer segundo, impacta no resultado. Na década de 90, com a ascensão da venda de marcas comerciais nos uniformes, também existe um movimento para dar visibilidade aos patrocinadores. É um equilíbrio muito sutil entre interesses comerciais e performance”, diz.
Além da ascensão das marcas no final do século passado, Vicentini destaca que, entre os anos 90 e 2000, a moda esportiva saiu dos jogos e foi para rua, no chamado streetwear. “As marcas esportivas começaram a trabalhar com roupas para o dia a dia e aumentaram muito o leque de atuação no mercado”, afirma. Segundo a especialista, isso fez com que a população voltasse a atenção ao mundo esportivo.
“Estamos dando atenção ao mundo esportivo, como os atletas se vestem, o tipo de estampa que foi utilizada, o tipo de tecido. E aí nada melhor do que você ter pessoas do cenário esportivo também fazendo essa propaganda”, destaca.
Ambas especialistas destacam que uniformes com características sexistas apenas deixarão de ser produzidos e usados caso haja um movimento quase unânime de atletas e da mídia contra esses cortes.
“A questão passa pela organização das mulheres em dizer não para aquele tipo de imposição, o que não é muito fácil porque as atletas são obrigadas quase sempre a se calarem diante de decisões absurdas, porque isso é tomado como indisciplina. E uma das marcas do esporte é a disciplina”, ressalta Rubio.
Fonte: Bahia Notícias