Defensoria denuncia governo de SP por racionar água em presídios

A Defensoria Pública denunciou o estado de São Paulo à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) por “dezenas de violações de direitos constatadas em inspeções feitas em unidades prisionais durante a pandemia da Covid-19”. O objetivo é que a comissão, que é órgão da Organização dos Estados Americanos (OEA), reconheça que os direitos dos presos estão sendo desrespeitados no estado e que imponha uma garantia para que isso mude.

Os relatórios, feitos após inspeções surpresa em 21 presídios pelos defensores, aos quais o G1 teve acesso, mostram que 85,71% das unidades prisionais fiscalizadas no estado durante a pandemia racionam água, sendo que, em algumas delas, o uso de água só é liberado por uma a duas horas por dia.

Com base nos relatórios, feitos após vistorias e relatórios feitos em 14 das 21 unidades prisionais inspecionadas entre 22 de junho de 2020 e 3 de março de 2021, a Defensoria Pública pediu ainda à CIDH a realização de uma audiência pública temática, que reuniria especialistas de toda a América Latina para discutir o tema.

O documento ainda será analisado e processado pela Comissão, que deverá avaliar se aceita a denúncia e a proposta de audiência e pedirá explicações ao governo de São Paulo e ao Brasil sobre o caso.

Em nota, a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), que administra os presídios no estado, negou todas as acusações, afirmando que as denúncias da Defensoria “são improcedentes”, que não há racionamento de água nas unidades e há a entrega regular de equipamentos de higiene e medicamentos aos detentos. Segundo a pasta, casos de falta de água foram “isolados” e que “não ocorreram conforme o descrito pela Defensoria”.

Segundo o governo de SP, “não há racionamento de água”. “Todas as unidades seguem o que determina a Organização Mundial da Saúde, que estipula o consumo mínimo per capita de 100 litros diários de água – o suficiente para uma pessoa saciar a sede, ter uma higiene adequada e preparar os alimentos. A Secretaria reforça o uso consciente para evitar que haja desperdício”, disse a pasta em nota.

De março de 2020 a abril de 2021, os defensores visitaram 21 presídios ou centros de detenção e fizeram 14 relatórios de inspeção. A falta de água é o principal alvo de reclamação dos detentos, segundo a denúncia. Para os defensores, este seria um fator que facilitaria a propagação da Covid-19 atrás das grades.

O estado de São Paulo tem 212 mil presos – população carcerária que representa 1/3 da brasileira. De março de 2020 a abril de 2021, mais de 13,3 mil detentos do sistema tiveram diagnóstico de coronavírus – o que representa quase 7% do total. Foram 41 mortes pela doença no período.

No Centro de Detenção Provisória (CDP) de Pinheiros, localizado na Zona Oeste da capital paulista, a água é fornecida em 4 períodos, “de 15 a 30 minutos”, disponibilizados às 6h30, 11h, 16h e 20h30, segundo a Defensoria.

“Uma das principais reclamações das pessoas presas é o absurdo racionamento de água. Desnecessário dizer que o fornecimento de água é insuficiente para as necessidades básicas, principalmente nos tempos atuais com uma pandemia que exige reforço nos hábitos de higiene. Assim, a falta de água, se corriqueiramente já impõe riscos à saúde, com a crise de saúde atual, se torna ainda mais grave”, afirmou o defensor Thiago de Luna Cury, após visita de 5 horas ao Centro de Detenção Provisória (CDP) II de Pinheiros, na Zona Oeste de São Paulo, em relatório de inspeção em agosto de 2020.

Já em 20 de janeiro de 2021, os defensores vistoriam o Centro de Detenção Provisória de Bauru, onde os detentos estavam sem fornecimento regular de água havia 5 dias. “[Os presos] informaram que, no dia antes da inspeção, a água havia chegado apenas na hora do almoço, mas acabou logo depois e não voltou mais. A água para banho é gelada e as garrafas para armazenamento foram retiradas dos presos”, escreveram os defensores no relatório de visita.

“O tempo de fornecimento de água varia entre os estabelecimentos prisionais. Na Penitenciária Masculina de Sorocaba II, as pessoas presas relataram que a água é liberada por apenas 45 minutos por dia. Em outras unidades, este tempo é um pouco maior, mas ainda sim insuficiente para as necessidades diárias de higiene. No Centro de Detenção Provisória (CDP) de Pinheiros, na Zona Oeste da cidade de São Paulo, a água é fornecida pelo período de 1 a 2 horas por dia”, escreveram os defensores públicos na denúncia ao órgão da OEA.

“Uma prática comum percebida ao longo das inspeções é o corte de água fracionado, isto é, a água é liberada por curto período de tempo em intervalos ao longo do dia, como, por exemplo, no Centro de Detenção Provisória de São Vicente, no litoral paulista, em que o racionamento se dá do seguinte modo: 5h da manhã por 2 horas, depois às 9h por 10 minutos e às 13h, 16h e 21h por 1 hora, totalizando aproximadamente 5 horas, ou seja, a água seria é fornecida apenas em ¼ das 24 horas”, afirmaram eles.

Segundo a Defensoria, a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) do governo do estado confirmou, em ofício, fazer “corte periódico, em mais de uma unidade prisional, muito embora não utilizem o termo racionamento de água, mas eufemismos, como ‘uso racional de água’ e ‘controle na distribuição do recurso'”.

Superlotação
Os documentos apontam que, desde 2014, 70% das unidades carcerárias estão superlotadas no estado. Dentre as 21 inspecionadas durante a pandemia, o número de superlotadas chegou a 93%, sendo que algumas delas estão com mais que o dobro de detentos do que a capacidade.

Também foram recebidos diversos relatos de celas, que possuem em média de 6 metros quadrados, conforme a lei brasileira, comportando 40 detentos e 12 camas, que são revezadas. Em alguns casos, espumas finas são utilizadas como “colchões” para dormir, disseram os presos.

Segundo os defensores, a aglomeração dos detentos e a falta de equipamentos básicos de higiene e saúde, e a falta de água, que permitiria a lavagem das mãos e a limpeza frequente, facilita a propagação da Covid nos presídios.

“Das 14 unidades inspecionadas durante a pandemia, 92,8% estavam superlotadas. O único estabelecimento que não estava com sua capacidade máxima, era a Prisão Feminina da Capital. A unidade com menor taxa de superlotação tinha 121,8% de ocupação e a com maior nível de ocupação, apresentava 230,5% de taxa de superlotação. A maior parte das unidades inspecionadas, 7 delas, tinham taxa de superlotação maior que 150% e parte considerável (4) tinham taxa de superlotação de mais de 200%”, escreveram os defensores na denúncia.

“Tem um ditado que diz que contra fatos não há argumentos. Pois bem, a realidade desumana em que se encontram as pessoas presas é um fato. Qualquer pessoa que já visitou um estabelecimento prisional do estado de São Paulo sabe do que estou falando. Não se trata apenas da superlotação, é a superlotação acrescida do descaso do poder público que leva à falta de água, alimentação precária, inúmeros problemas de saúde, problemas estruturais nas celas etc. Essa situação ficou ainda mais grave durante a pandemia, com a restrição às visitas presenciais e a impossibilidade de se manter o distanciamento seguro entre as pessoas presas”, disse a defensora pública Maria Camila de Azevedo Barros, integrante do Núcleo Especializado de Situação Carcerária.

Segundo ela, foi “esse contexto de omissão do Estado”, de “todos os Poderes”, que “esse apelo à Comissão Interamericana de Direitos Humanos se faz necessário para tentar garantir pelo menos um mínimo de dignidade às pessoas presas”.

Sobre a superlotação, a SAP afirmou que “já foram entregues, desde o início da gestão, sete presídios, sendo cinco em 2019 e dois em 2020 e outros 6 serão entregues em 2021” e que o governo vem adotando medidas paralelas para oferecer “ao Judiciário opções ao encarceramento”.

40 presos para 12 camas na Capital
Um dos presídios com maior superlotação é o Centro de Detenção Provisória II de Pinheiros, na Zona Oeste de São Paulo. Com capacidade para 793 pessoas, abrigava 1.625 quando vistoriado pela Defensoria em agosto de 2020 – mais de 204% da capacidade.

“Em boa parte das celas, vivem cerca de 40 pessoas onde só há 12 camas”, diz o relatório do presídio. “Não há, por isso, camas para todas as pessoas, e o espaço para a colocação de colchões é insuficiente, havendo necessidade de 2 ou mais pessoas presas dividirem o mesmo colchão”, escreveram os agentes.

Sobre uma cela de seguro, onde ficavam detentos sob risco, havia 12 pessoas e 9 colchões. “O local, além de mal iluminado (a luz artificial externa chega apenas na entrada da cela), cheirava mal”, diz o relatório.

Antes da inspeção, o CDP de Pinheiros passou por uma testagem de Covid-19 feita por meio de teste rápido. Na ocasião, 816 detentos da unidade (50% da população carcerária) testaram positivo para a doença.

“Antes da realização de testes em massa, não havia sido detectado nenhum caso de Covid-19 na unidade, apesar de, segundo a direção, realizarem semanalmente medição de temperatura e questionário sobre sintomas em relação a todas as pessoas presas na unidade, o que continuaria até a data da inspeção”, afirmaram os defensores após a inspeção.

A Defensoria diz que o racionamento de água no CDP de Pinheiros já existia em 2014, quando havia sido realizada a última visita à unidade, mas que a situação “piorou”. (Fonte: G1)

Foto: reprodução
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