A defesa da ideologia de esquerda como sendo uma extensão do Evangelho é o campo de atuação dos chamados “evangélicos de esquerda”, que defendem aspectos da pauta progressista e frequentemente são citados por partidos como PT e PSOL como canais de diálogo com o segmento religioso que mais cresce no Brasil.
Uma das figuras mais conhecidas desse movimento, o pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ) é o nome mais citado por veículos da grande mídia quando o assunto é a presença da esquerda entre os evangélicos. Afeito a polêmicas, o líder religioso representará Jesus no desfile da Mangueira no carnaval do Rio de Janeiro este ano.
Vieira acredita que é possível fazer uma leitura do Evangelho pela ótica progressista: “Até mesmo antes de reforçar minha identidade como alguém de esquerda, sou evangélico no sentido de alguém que crê no Evangelho, em Jesus como filho de Deus, como Salvador e como manifestação máxima do amor de Deus. […] A opção pela esquerda tem a ver com a opção pela justiça social, pela superação da desigualdade social, de toda e qualquer forma de opressão, de exploração econômica, a valorização da democracia e dos Direitos Humanos, das liberdades e do respeito à diversidade. Isso que eu identifico como ser de esquerda”, afirmou, em entrevista ao Yahoo!
O movimento dos “evangélicos de esquerda” se juntou em um grupo homônimo no Facebook, criado pelo advogado Washington Junior, que considera uma espécie de “resistência” da ideologia a presença da esquerda dentro da igreja evangélica.
“Ser evangélico de esquerda é seguir a Cristo, a Deus em primeiro lugar e também lutar por justiça social, distribuição de renda, fim das opressões das maiorias em relação as minorias. Também, nos dias atuais, é ser resistência dentro de uma maioria esmagadora de evangélicos de direita nas igrejas”, disse Junior.
A proximidade com o comunismo – que persegue cristãos em pleno século XXI – e com o socialismo – responsável pela universalização da miséria nos países onde foi implantado, como a Venezuela, não parece incomodar.
Os dois entusiastas da ideologia de esquerda se manifestaram em defesa de temas como legalização do aborto, união de pessoas do mesmo sexo e interação política da esquerda com as denominações evangélicas e seus fiéis, além da pregação do Evangelho pela ótica progressista.
Confira:
Aborto
Henrique Vieira: Não se trata de defender o aborto em si, mas entender que a política que criminaliza não reduz o número de abortos e ainda coloca mulheres na clandestinidade, vulnerabilidade e morte. Portanto, a legalização do aborto é para que isso seja tratado na dimensão da assistência, do diálogo, da educação, do acolhimento e do respeito. A política atual que criminaliza simplesmente mata, e meu interesse como cristão é pela vida.
Washington Junior: Acredito que a maior discussão esteja na questão do aborto. Muitos acreditam que a mulher deva ter o direito de interromper a gestação a seu critério, enquanto outros acham que só deva ser interrompido em casos excepcionais como gestação em decorrência de estupro. Não há um consenso sobre o aborto. Nem dá para afirmar qual visão prevalece entre os evangélicos de esquerda.
União civil homossexual
Henrique Vieira: Casamento gay significa respeito à liberdade das pessoas. Vivemos em uma democracia em que o Estado é laico e, portanto, o casamento gay deve ser reconhecido em todos os seus direitos. Além disso, reconheço do ponto de vista bíblico e teológico que toda forma de amor, o amor ético, sério e leal, é uma sacralidade. Todo amor é sagrado.
Washington Junior: Os evangélicos de esquerda têm uma visão consolidada da separação entre Igreja e Estado. Por isso, há um consenso entre alguns assuntos como a não oposição do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, em relação a outros assuntos, como a proteção de direitos humanos, a igualdade de gênero, promoção de direitos civis e sociais. Por estar em conformidade com a palavra de Cristo, não há divergência entre os evangélicos de esquerda.
Diálogo da esquerda com evangélicos
Henrique Vieira: Eu entendo que a esquerda precisa ter um diálogo efetivo, sincero e íntegro com o campo evangélico, e não pode ser apenas por eleição ou votos. O campo evangélico é majoritariamente popular, negro, feminino. É expressão da classe trabalhadora e a esquerda, diferentemente da direita, tem compromisso com a classe trabalhadora, com a promoção da justiça social, garantia e promoção de direitos. Conversar com os evangélicos é conversar com uma parcela dessa classe trabalhadora que todos os dias levanta para buscar o pão de cada dia e lutar para sua sobrevivência. Não pode ser uma conversa fisiológica pensando apenas em um mapa eleitoral. Precisa ser uma conversa efetiva pensando em um projeto de País justo, solidário, fraterno, que celebre a diversidade e garanta a devida democracia.
Washington Junior: Esqueceram totalmente [de dialogar] e acredito que por opção política. Deixaram de ouvir e dialogar com os evangélicos, que sentiram-se abandonados e foram abraçados pela direita. Isso vem acontecendo desde 2010, e culminou com a eleição de [Marcelo] Crivela em 2016 e depois a do Bolsonaro em 2018. […] Os evangélicos dialogavam muito com a esquerda até o final do segundo mandato do Lula. Acontecia de grandes cantores evangélicos pararem seus shows no meio para fazer campanha para o Lula e consequentemente para esquerda. Pastores de grandes igrejas falavam do Lula e do PT no meio do culto. Isso foi se perdendo. Já denunciávamos isso no primeiro governo Dilma, que a esquerda estava abandonando completamente o diálogo com os evangélicos. Talvez nosso grupo “Evangélicos de Esquerda” tenha sido um dos primeiros a denunciar isso lá em 2010.
Evangelho na ótica progressista
Henrique Vieira: Toda pregação é situada historicamente, nunca é uma pregação neutra. Então cabe a cada líder religioso ter honestidade em assumir que sua pregação tem interferência na sociedade. Neutralidade não existe, existe hipocrisia. O que é um importante? Que a mensagem seja pregada em coerência com o Evangelho. Para além de esquerda, para além de direita. […] O Evangelho é um apelo à justiça, à igualdade, à promoção da paz. Não dá para associar o Evangelho com exploração sobre o pobre, não dá pra associar o Evangelho ao preconceito, intolerância, discurso de morte, exaltação de tortura, defesa de ditadura, justiçamento com as próprias mãos, arma na mão saindo por aí fazendo uma falsa justiça.
Washington Junior: É possível. Jesus veio para falar principalmente de Salvação, amor e perdão. Claro que ele influenciou muito questões sociais e políticas, mas nunca foi sua prioridade. É possível pregar a palavra sem política partidária tanto para esquerda quanto para a direita. Inclusive muitos evangélicos de esquerda defendem isso.
por Tiago Chagas / Gospel +