André Mendonça não foi o primeiro a chegar lá. Ainda que a narrativa vitoriosa sustente que o pastor presbiteriano, indicado pelo presidente Jair Bolsonaro, será o primeiro evangélico no STF (Supremo Tribunal Federal), o marco foi alcançado há mais de seis décadas, com a nomeação de Antônio Martins Villas Boas (1896-1987).
A chegada do diácono da Primeira Igreja Batista de Belo Horizonte à mais alta corte do país foi destaque da primeira página da publicação O Jornal Batista no dia 21 de fevereiro de 1957. Sob a foto do novo ministro, uma legenda louvava aquele que, “como é sabido, é um crente fiel em Jesus Cristo”.
“Não somente o ministro Villas Boas está de parabéns, mas de modo indireto nós os evangélicos, pela honra que nos cabe”, dizia a edição. “Salvo equívoco, é a primeira vez que tal honra cabe a um cristão evangélico.”
Dois batistas lançam nesta semana um artigo para desmontar a versão de que Mendonça é pioneiro nesse sentido.
Coordenadores da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, de uma minoritária ala progressista no segmento, o pastor Ariovaldo Ramos e a crente Nilza Valéria Zacarias assinam o texto crítico ao desembarque de Mendonça no STF.
“Só para constar -continuaremos gritando que chegamos antes. Chegamos republicanamente, e bem. Quem chegou depois, dizendo que chegou antes, chegou usurpando um lugar na história. Como isso é feio para quem se diz cristão”, dizem no material.
Villas Boas conquistou uma cadeira no Supremo por indicação de Juscelino Kubitschek. Não consta que o então presidente tenha levado em conta suas credenciais religiosas para fazê-lo.
O novo ministro não limou sua cristandade no discurso de posse. Ele citou Cristo na ocasião e terminou evocando o que via como sua maior bússola moral.
“Em tudo quanto fizer, e para isso invoco a permanente proteção divina, hei de pôr a nota inconfundível do meu Eterno Senhor, o Mestre incomparável da ternura humana.”
A fala de Villas Boas, contudo, prestou-se sobretudo a repisar seu compromisso com os ditames constitucionais. Ao defender um Supremo intérprete da Constituição, num Brasil ainda sob a névoa do suicídio de Getúlio Vargas, atentou à turbulência social daqueles tempos.
“Uma declaração dessa ordem coincide, por vezes, com fases particularmente delicadas da vida de um povo, em que a divisão dos espíritos e o ímpeto das paixões turvam a clara visão das coisas”, declarou. “Daí não ficar o próprio Supremo a cavaleiro de censuras.”
Sua religiosidade não era segredo para contemporâneos, como fica evidente em sessão plenária realizada em homenagem ao seu centenário, 1996.
À época ministro do STF, Carlos Velloso se apresentou como amigo e admirador do colega antes de resgatar o dia em que o batista se despediu do tribunal, por chegar à idade da aposentadoria compulsória.
“O presidente da corte, ministro Cândido Motta Filho, depois de dizer que Villas Boas jamais encobriu, com sua toga austera, o seu invejável coração, cheio de ternura humana, acrescentou: ‘Cada vez que o vimos a julgar, mestre do direito e das coisas divinas, percebíamos, sempre, a sua repugnância pelos pretorianos truculentos contra os quais sempre se ergueu a meiga indignação da sua fé religiosa’.”
Outro ministro, Gonçalves de Oliveira afirmou na ocasião que Villas Boas “votava como um apóstolo, queria fazer justiça, mas sobretudo, queria fazer o bem”.
Velloso destacou, ainda, o que definiu como “quase indignada reação às prisões e processos militares arbitrários” que se promoveram na primeira fase do golpe de 1964.
“Foram centenas os réus sem crime ou sem culpa formada que dele obtiveram numerosas ordens de habeas corpus.”
O primeiro evangélico do STF foi também precursor em sua liderança, como rememoram Ramos e Zacarias, autores do artigo a seu respeito.
“É bom que todos saibam (que nossa voz ecoe longe) que o ministro Antonio Martins Villas Boas, crente batista, exerceu a presidência da corte de 9 de março de 1965 até 15 de novembro de 1966.”
“Como podem apagar uma história dessa?”, questiona a dupla que recuperou o pioneirismo de Villas Boas como ministro evangélico.
“Talvez porque ele não ocupou um lugar tão importante como um lacaio do fascismo tupiniquim que tem provocado fome e morte”, continuam os coordenadores do grupo evangélico de esquerda.
“Pelo que lemos da bela biografia de Antônio Martins, ele não concordaria com nada disso [da agenda bolsonarista]. Ele lia a Bíblia todos os dias e entendia, como entendemos, que não se governa para um grupo. O governo é para um país inteiro. Para todas as pessoas, sejam de que credo for.”